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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | TRINTA E UM

Início

Quando voltou a si e abriu os olhos, reparou que a Porcelana Branca estava perto, à espera.
“Lamento” ofereceu a General solene, dando os primeiros passos na direcção do Bernardo e da São – e do corpo do Carlos.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | TRINTA

Memórias Digitais

Quando a São lhe disse que o irmão tinha ido ter com o Joel, aquela serpente que andou a carregar, finalmente mordeu e não largou.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E NOVE

Foge, Idiota

Algumas horas mais tarde, O Joel estava de volta. A madrugada espreitava, mas ainda faltava para serem horas decentes. Se bem que para ele, nunca seriam. 
Desta vez veio sozinho e de braços abertos. Em paz. Queria ir a casa da mãe que era sua por direito. Dela, já ninguém sabia e poucos diziam que tinha ido viver com outra família. A casa continuava no mesmo sítio, vazia e à espera que alguém acendesse a luz e cortasse pão na mesa. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E OITO

Anel Azul

O Bernardo encontrava-se no café a brincar com o anel azul da Frederica. E milhentas coisas corriam loucas pela cabeça. 
Outros homens e mulheres ocupavam as mesas do café; bebiam, comiam e ocupavam os minutos com conversas tensas. 
O irmão tinha ido a casa, mas já voltava para conversarem. Teriam muito que falar depois de hoje; a Vera tinha ido para a casa do pai. De novo sozinho num mundo que não era o dele. Nem do irmão. Mentia, o Carlos pertencia mais a este mundo do que ao outro. Mesmo que ninguém soubesse que ele não era da zona. 

domingo, 27 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E SETE

Onze Anos

Dois pares de olhos espreitavam dos muros de Salvador. 
Um jovem e um velho; os dois a olhar para lá da aldeia e para as suas estradas. Outros pares também guardavam as entradas para a aldeia.

sábado, 26 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E SEIS

Onze Dias 

Passaram onze dias desde que o velho voltou a abrir a porta. O Bernardo contou-os pelo telemóvel que mantinha ligado; a carregar na tomada daquela nova casa. 
Soube que estavam no seu mundo pelas mensagens, notificações e spam que entupiram o ecrã. Onde? O velho não dissera. A casita era quente e confortável, o oposto da gruta onde estiveram. No fundo, o velho fizera-lhes uma bondade. 


sexta-feira, 25 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E CINCO

Mantas

Só o Bernardo ouviu o velho. 
A Vera continuou abraçada ao Fausto como se tivesse adormecido por cima do corpo – ou mesmo morrido. E o velho também não se repetiu. 
Olhou para ela e depois para o Bernardo encostado à porta. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E QUATRO

Cerúleo

Com a porta fechada, os três tinham separado as duas realidades.  
Os três: havia um Bernardo encostado à porta, a levar água ao sobrolho para limpar aquela sensação quente; uma Vera que sussurrava entre choros copiosos; e um Fausto deitado no escuro, ensopado de sangue e da água do chão. A sua resistência ao mundo dos vivos era denunciada pela pieira lenta e pesada.  


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E TRÊS

Deus Ex Clustrum

Os dois rapazes chegaram a meio do túnel quando o Joel ordenou ao amigo para esperar. 
“Pode ser um segurança a fechar o jardim.” 
Mas a traseira do amigo já tinha desaparecido no escuro. Então quedou-se onde estava, com aquela serpente nos ombros a sibilar-lhe medos. 
O soldado apressou-se rasteiro, com a mão fechada no punho da espada e quando deu com a saída, deparou-se com outro cenário. E ouviu tudo. 

A tormenta agita o coração do homem bom. 

O Joel saiu para a claridade do poço e marchou de espada no ar. 

Que sem porto seguro, afoga-se. 


terça-feira, 22 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E DOIS

Todos os Caminhos Levam ao Túnel

O dia estava longe de terminar, mas os amarelos e os laranjas começavam a pintar o cenário. O sol espiava no céu todas aquelas pessoas que conspiravam. Amor, vida, novas oportunidades, música, livros, traição e glória.  
A Mão acabara de vestir as últimas partes da sua armadura pálida quando o dirigível tocou terra, num intervalo de arvoredo à entrada da serra. Os quatro braços estavam reunidos com notícias - boas, más, relativo, mas o assassino estava perto, e mais importante, quem ajudou a Da Assunção a escapar. Apertou a manopla branca com a certeza de que não lhe iriam escapar pelos dedos. E achou aquele trocadilho tolo, mas estava sobremaneira entusiasmada. 
Desceram da plataforma e subiram a serra. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E UM

Demanda do Herói


O Fausto sossegou-a com um beijo na testa e ficou com as crianças no muro. 

A Vera correu para o Joel, mas parou a meio. Em parte, por respeito ao actual companheiro, mas porque não tinha a certeza se estava a ver bem. Não acreditava em fantasmas, mas que tinha um à frente, tinha... 
Secou a cara com o braço e caminhou a medo até ao rapaz na sombra. Ele também tremia e lacrimejava. Ele estava tão radiante de ver a Vera que bloqueou o que estava a mais. 


domingo, 20 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE

Flashback

Era uma vez, um rapaz e uma rapariga. Novos, e apaixonados. Ela por ele, ele demorou a lá chegar. Fizeram a escola juntos – ou até onde deu. Ela foi trabalhar com o pai, ele para academia. A certa altura, durante uma licença dele, fizeram-se noivos.

Quando voltar, não tens de trabalhar mais. Podes tocar o dia todo. 

Mas não voltou. Apenas a notícia de que tinha caído em combate. Enterram um caixão vazio.

A noiva, namorada, amiga, colega de escola chorou, berrou, amaldiçoou tudo e todos. E quando o coração se alinhou com a cabeça, e os olhos secaram, rumou à casa da mãe dele. O pai tinha sumido, a mãe ficou para os lembrar. As duas choraram entre vinho e pão. Falaram as horas e confessaram-se. A noiva pediu perdão e a bênção da sogra e partiu livre.

Semanas depois, com as vindimas a espreitarem, um grupo musical passou pela aldeia e instalou-se nos arredores. Não eram um circo, mas montaram tendas, bancas de comida e trouxeram muita animação. Todos gostavam de os receber porque os seus ventos sopravam festas e bons tempos. Eram bom presságio para qualquer actividade e caramba, se não a vindima não foi rica. 

E num dia, encostada à cerejeira do monte, a Vera estava metida para si quando a sombra de um moço se apresentou. 
“Que fazes?” perguntou uma voz masculina.
A Vera afastou a cabeça do caderno e mirou o rapaz à sua frente. Cabelo arruivado, puxado para trás e atado num elástico. Os olhos sorriam quase como os lábios, e não havia uma ponta de presunção em nenhum deles. 
“Uma lista.” E voltou a atenção para baixo.
“Interessante. Das músicas que queres ouvir logo?” 
Bateu com as páginas e guardou o caderno entre as pernas. 
“Engraçado.” 
“Eu tento, eu tento!” Esfregou a nuca sorridente.
Mas a rapariga não deu corda. Apenas o vento monte acima, por entre a relva e a árvore. Ao longe, ouvia-se alguém a tocar numa tenda.
“É o meu primo a testar o som.” 
“Pronto...” 
E como ela não estava para conversas, o rapaz desceu para as tendas. E acabou por aí.

Mas no próximo dia, voltaram a encontrar-se. Ela com o caderno e ele com uma guitarra. 
“Ei, ontem não me apresentei. Sou o Fausto.” 
“Vera.” E foi ela a estender-lhe a mão. O rapaz aceitou-a e devolveu-a, surpreendido com a suavidade daquela mão.
“Importas-te?” Perguntou-lhe, apontando para o chão. 
“Por favor.” 
Rodeou o tronco da cerejeira e aterrou na relva. Assentou a guitarra no golo e dedilhou o início de uma canção. A porta das recordações abriu-se de fininho e regressou a uma cozinha, com loiça empilhada e alguém que tinha amado. Ele assobiava aquela música quando caminhava ou trabalhava em alguma coisa, mas como se chamava?
"Como se chama a música?"
"Mama, I'm coming home, do Ozzy."
"O que quer dizer?"
"Mãe estou a chegar. Ou algo assim."
Mas ele nunca chegou...
“Pensava que só tocavam pimba” troçou para se trazer de volta. Ele fingiu estar insultado. 
“Isso são eles. E os velhotes adoram!” 
“Já reparei, já reparei. Todos coladinhos." 
“Tão verdade. Tenho de admitir e não me julgues, mas também toco pimba. Mas" e quis enfatizar o mas, "também toco mais mexidas. Conheces os Beatles?
Tocou com os nós dos dedos na base da guitarra e começou uma música nova, mas não dizia nada à Vera.
“Rádios piratas, conheces?” 
“Sim.” 
“É de lá que tiramos estas músicas.” 
“E se alguém faz queixa?” 
“Pff, não as toco nos bailes. O pessoal quer é ouvir modinhas com trocadilhos picantes." 
Agora riu-se ela. Ele achou que foi o som mais belo que tinha ouvido.
Sacudiu os dedos pelas cordas e trauteou qualquer coisa. Quando apanhou o ritmo, começou a rimar com o riso dela.
"Oh por favor, isso nem rima." Revirou os olhos.

A letra não rima.
Devia ouvir o meu pai na concertina!

Bastou aquilo para a atirar ao chão de tanto riso.
"Ei, é verdade! Já ouviste o velho!"
"Que parvo!"

Parvo, o bardooo! 

Suspiram o riso e secaram as lágrimas.
“Como vai a lista?” Lembrou-se por fim.
A rapariga estendeu-lhe o caderno que ele aceitou. Ela ainda lutava para controlar a respiração. Ouviu-o a folhear, o papel contra o papel e a bichanar enquanto lia:

1 – Sair de Salvador 
2 – Viseu 
3 – Lisboa 
4 – Aprender música 

“Parece-me bem. Tens tudo pensado. E onde queres aprender música?” Entregou-lhe a lista
“Numa escola de música. Lá deve haver muitas.” 
“Certo, mas em Viseu também deve haver. Nem tens de sair daqui.” 
“Primeiro ponto.”
“Sim, sair de Salvador. Alguma razão em especial?” 
“Não há nada que me prenda aqui.”
"Os teus pais?"
"Vão estar sempre aqui para os visitar."
"Certo."

Desta foi ele a calar-se quando ela esperava mais. Pouco depois, desceu para as tendas com até amanhãs.

Três dias, três encontros.
O Fausto correu para a árvore e sorria de orelha a orelha quando anunciou sem fôlego: “tenho uma ideia para a tua lista.”
“Ai é?” 
“Sim! Porque não vens connosco?” 
Han?” 
“Arrancamos daqui a uns dias, certo? Depois vamos correr o resto das aldeias até Lisboa.” 
"Sim?"
“Poupavas dinheiro em viagens e não esperavas por Lisboa para aprender a tocar. Podias aprender connosco!” 
“Contigo, queres dizer.” 
“Se quiseres, sim! A menos que queiras aprender concertina."
“Pensaste nisto a noite toda?” 
“Nem por isso. Foi a minha mãe a sugerir.” 
Algo dentro dela estremeceu. Aquela sensação quente de uma família unida e que fala. E havia algo na excitação do rapaz Fausto.
“Diz-me, meu caro: e dinheiro? E comida?”
“Toda a gente trabalha no grupo e toda a gente come e dorme. Haverá algo para fazeres."
A Vera saltou da relva e sacudiu o vestido de flores. Apanhou o caderno e abriu na lista.
“Estás a sugerir ignorar o meu plano? Trabalhei durante dias nele" resmungou. Os lábios tremeram e rasgaram num sorriso zombeteiro.
“Desculpe lá, mas já vi melhores listas de mercearia" gozou o parvo, o bardo. Sim, ele tinha um jeito com as palavras. Os dois riram à gargalhada.
E naquele fim de tarde, quando o sol se ia deitar, a Vera rasgou a lista. 
“Os meus pais vão-me matar...” suspirou de ansiedade e ajeitou o cabelo para trás da orelha. 
“Os meus podem falar com os teus.” 
“Tenho seis anos? Não é preciso.” 

Ao terceiro encontro, nenhum deixou o outro sozinho e ficaram os dois encostados à cerejeira. Houve mais festa nessa noite e a família do Fausto repetiu o reportório que o povo adorava. Dançaram, comeram e beberam bem. A vindima estava a correr lindamente. 
O Fausto subiu ao palco e tocou uma das suas músicas estrangeiras, mas sem cantar. Mas ela estava em conluio com ele e sabia qual era. Ele sorria só para ela. Ela sorria só para ele. 
O resto dos dias passaram num ápice e ela despediu-se dos pais. Prometeu ligar uma vez por dia enquanto estivesse em viagem e duas vezes quando estivesse em Lisboa. 
Passaram-lhe algum dinheiro para despesas e umas garrafas de vinho para os anfitriões. 

Dias. Semanas. Meses. 

O grupo desceu pelo país, tocou e encantou. Nas pausas, o Fausto ensinou a Vera a tocar e não demorou até se juntar em palco com o grupo; depois só com o Fausto num dueto. Esta é para os apaixonados e derretiam os corações. Não demorou muito a cair por ela. Ela demorou a lá chegar. 
A Vera trabalhou imenso para pagar a sua parte. Gostavam dela e ela de todos, menos do primo que era parvo. 
E, numa noite entre concertos e cantorias, ele declarou-se. Ela que não era burra nenhuma, já estranhava a demora.
Houve um beijo, outro. E uma serenata improvisada.

Quando chegaram a Lisboa, a Vera já não tinha interesse em estudar. Trabalhava, sabia tocar e preferia a liberdade da estrada do que os livros entre paredes. Mais, agora estava com o Fausto e estava para lá de feliz. Iam casar no final da digressão e agora era para valer.
O único concerto que iam dar no Coração do Império seria em Sintra. Ela, o Fausto e os primos iam dar um concerto experimental que ela andou a magicar. Absorveu toda a música estrangeira do namorado, toda a música portuguesa dos pais dele e começou a compor umas coisinhas que o primo parvo começou a cantar. Todos concordaram que tinha pernas para andar e nada melhor que um concerto pequeno para testar.

Iam estrear-se num palco rodeado de árvores e bicharada. O par não podia estar mais feliz.
No dia do concerto, quando o casal descansava, um grupo de crianças correu para ela para lhe pedir lições. A rapariga da aldeia que já se achava capaz de ensinar, não quis recusar. Tocou uma, duas e à terceira canção, um fantasma materializou-se na sombra da Tenda da Ninfa.
Os dedos congelaram nas cordas, a voz agoniou-a e engoliu para não vomitar. Os olhos traíram-na e voltaram a escorrer.

"Olá" saudou o Joel.

sábado, 19 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | DEZANOVE

Sintra

“A linha de Sintra é igual em todo o lado!” Bradou excitado perante o cenário familiar das pessoas a correrem para lá e para cá; das conversas marulhadas e da voz omnipresente da estação a anunciar os próximos destinos. 

Da livraria à estação do Rossio foi um salto e era melhor apanhar o comboio ali do que noutra estação. O Bernardo não lutava, não conduzia e tinha os instintos de sobrevivência de uma cadeira, embora esta soubesse cair quando em perigo, mas conhecia as suas estações para ir a Sintra.  
Daí que foi um choque quando viu o Rossio cheio fora da hora de ponta. 
Havia todo o tipo de pessoas por ali, desde pessoas com fatos que iam trabalhar a crianças; estudantes e reformados. Outros que carregavam mochilas e varas de caminhada; alguns comiam e bebiam e outros que adormeciam mal se sentavam. Viram dois polícias a patrulhar e a desaparecer nas escadas.  
Sentaram-se num banco da estação e deixaram o comboio partir para escoar a plataforma, mas não arriscaram no próximo e furaram para o fundo da carruagem. O comboio soluçou e arrancou, deslizando pela linha fora. 
“Ei.” Cotovelou o amigo que ainda estava colado ao panfleto. “Agora é rápido.” 
Nada. 
“É a tua primeira vez?” 
“Hum?” Levantou os olhos para a pergunta. “Num comboio?” 
“Sintra.” 
Acenou um sim que se evaporou no papel com a foto da noiva. 
O Bernardo acabou por se calar e deixar o outro na sua cabeça. Afundou-se no banco, abraçado à sua mochila. 

Ao contrário do seu mundo, os passageiros na carruagem não eram tão diversos e ricos. Sentiu a falta daquelas conversas cruzadas em crioulo, e tentar decifrar o que diziam, apanhando uma palavra aqui e ali. Também não ouviu o brasileiro. No seu lado, as pessoas abriam portas para tentarem sobreviver noutros países e se algumas conseguiam, havia quem odiasse ter as suas portas escancaradas. E qualquer coisa era melhor que a monotonia daquela carruagem. 
A vista da janela seduziu-o, com os muitos prédios a multiplicarem-se; a passarem a fábricas a cada estação que paravam; a desaparecerem e abrirem em campos de cultivo; e às primeiras árvores que se erguiam da terra. Estas mudanças embalaram o Bernardo que acabou por ver o resto para dentro. O Joel acordou-o quando chegaram à estação terminal e todos saíam. 
Esfregou os olhos para acabar de acordar e pediu ao amigo para ficar. A carruagem esvaziou-se dos últimos passageiros e os dois seguiram em último. 
Foram atrás das pessoas pela estação e saíram para a rua. 

O fresco recebeu-os com abraços e arrepios. Os rapazes não estavam preparados para aquela diferença, muito menos o Bernardo que não tinha outra roupa. Esta Sintra não era a que tinha na cabeça, cheia de turistas e lojas de bugigangas. Não havia fachadas ou casas velhas a cair, havia sim muito verde. Esta Sintra era limpa e as pessoas com as suas vozes de mar agitado, mais todos os ruídos eléctricos dissolveram-se num silêncio de igreja, respeitoso e solene. 
Aspirou o ar puro enquanto o amigo caminhava à frente e procurou por sensações semelhantes no outro lado. Era quase como entrar numa bolha onde o tempo não tinha autoridade.  
De mochilas às costas, bastões ou com crianças pela mão, os vários grupos seguiram pelos caminhos marcados e desapareceram nas curvas dos grossos troncos das árvores que viviam na serra há anos atrás de anos. Após pedirem indicações, os dois rapazes fizeram o mesmo e lá foram. 

Há muito que a fauna deixara de mostrar curiosidade pelos visitantes, principalmente as aves que saltavam de ramo em ramo em amena cavaqueira; os outros animais levantavam as cabeças e voltavam aos seus afazeres, mas quando o Bernardo passou, talvez pelo cheiro ou pela aura de estranho, houve um silêncio de segundos que durou uma eternidade até retomarem as rotinas. 
Três pequenos dirigíveis sobrevoavam as copas frondosas da serra para lá e para cá, mas desta vez, o Bernardo não se atirou ao chão. Admirou-os ao longe com um sorriso de aventura que borbulhava dentro de si. Só ignorava que alguém o olhava de volta. 

Demoraram o seu tempo até verem a Tenda da Ninfa que não era uma tenda, mas uma casinha bucólica de porta aberta para receber o ar. Havia uma senhora sentada num mocho, um cesto colado às pernas e fios que subiam até às suas mãos. Duas grandes agulhas a dançar-lhe entre os dedos e um sorriso experiente nos lábios da velha. 
Um grupo de músicos ensaiava folioso e ria muito entre cantigas e garrafas. 
“É aqui” indicou o Bernardo. “Vens?” 
“Vou explorar.” Despediu-se com uma palmada nas costas do amigo e dirigiu-se para a música. 
“Força nisso.” 
O Bernardo podia sentir o amigo se estivesse para aí virado, mas com a porta da Tenda aberta, havia apenas um objectivo e um só: o homem dos livros e voltar para casa. O amigo iria ficar bem. 
Cumprimentou a velhota com um boa tarde e entrou para a sombra da loja, onde foi encontrar uma mesa com torres de livros tão diferentes dos da Bertrand. Todos os géneros que não estavam nas prateleiras da livraria mais antiga do mundo estavam ali representados. Reconheceu alguns do seu mundo e o coração derreteu-se ao ver um exemplar do seu livro favorito. Tinha a impressão de ter entrado num mundo aparte, numa casa rodeada por natureza, recheada de ideias, cheiros e banda sonora. Tão surreal e mágico e cada passo para dentro era um risco ansioso e uma possível desilusão. 
O chão de madeira velha denunciou-o e a cabeça de um velho espreitou de uma torre de livros. Com o indicador nos lábios, nem deixou o Bernardo falar. 
Saltou da cadeira e pôs-se ao lado do rapaz, puxando-o para si como se o conhecesse desde criança. 
“O Guilherme disse-me que vinhas aí. És tu, não és? Não me enganei?” 
Falava rápido, as palavras acabavam onde as próximas começavam. 
“Ela está bem? A Frederica? Onde se viram? O anel?” 
E só teve tempo de o tirar do bolso e mostrar ao velho da Tenda da Ninfa que deixou cair a boca. Fechou os lábios num sorriso satisfeito. 
“Anda, vamos falar.” 

Enquanto isso, lá fora, o Joel mostrou o panfleto ao grupo que apontou para as traseiras da casa. Seguiu de mãos nos bolsos, a espreitar pelas janelas, e rodeou a parede. Sentia-se de volta à guerra, como aquele tinido ao longe e a antecipação de uma emboscada. 
Os pássaros chilreavam, os ramos vergavam com o vento e as folhas aplaudiam a cantilena no jardim. O Joel ouviu vozes de dentro e virou no último canto. E foi quando a viu. 
A Vera de Salvador sentada no muro; a guitarra de pé contra o seu peito. Tinha o cabelo maior espalhado nas costas e estava vestida para o tempo fresco de Sintra. 
A voz que nunca tinha saído das memórias do Joel contava histórias a um grupo de crianças atentas. Ao lado da rapariga, estava outro rapaz que a olhava apaixonado. 

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | DEZOITO

A Livraria Mais Velha do Mundo

“... E contaste-lhe tudo?” perguntou o Joel com a cabeça enterrada no volante. 
“Perguntei-lhe sobre livrarias e a coisa escorregou...” 
“Escorregou... Bernardo, eles queriam entregar-te...” 
A noção súbita da asneira que fez correu-lhe pela vista como um animal a atravessar o trânsito de noite. 
“Achas que eles vão falar?” perguntou a sentir a serpente da ansiedade a enrolar-se nas extremidades. 
“Sim. Se não falaram já.” Expulsou todo o ar que guardava nos pulmões e susteve a respiração.  
Ninguém falou nos próximos minutos. E os minutos roçaram a hora quando o dia começou a espreitar por entre os prédios. Havia aquele espaço ansioso e eléctrico - uma espécie de cofre onde o Joel decidiu guardar o destino do namorado.
Ergueu a cabeça e fixou o escorrega e o baloiço do jardim onde estavam parados. Havia uma saudade e um pesar naquele olhar demorado; a respiração deu lugar a um suspiro que carregava um conjuntivo. 

Finalmente encarou o amigo, “E o que ela disse?” 
“Bertrand.” 
“O que é isso?” 
“Uma livraria que também existe no meu mundo. É a mais antiga no mundo e não sei como não me lembrei...” 
“Só fui duas vezes a Lisboa. Sabes lá ter?” 
“Se for no mesmo sítio, sei.” 
“E depois?” 
“Tenho de mostrar este anel a alguém de lá e espero que me ajudem a voltar para casa.” 
“E depois vais? Quer dizer... para o teu mundo?” 
O Bernardo não respondeu, mas entendeu o silêncio das pausas do Joel.  
Havia uma casa em Salvador para onde não podia voltar mais. Não era a primeira vez que tirava uma vida – como soldado, era esperado dele. Era o seu trabalho. Agora que estava fora, tirar uma vida era... errado. Se bem que, ele também estava morto. 
“Vamos lá, amigo. Vamos primeiro à livraria e depois vamos ver da Vera.” 
“Obrigado.” 
“Prefiro que me contes tudo do teu mundo.” 
“Há muita coisa que não percebo do teu. Mãos e braços?” Sacudiu os ombros a forçar um riso. 
“Não é muito complicado. Vamos a pé. É melhor.” Foi o primeiro a sair e trouxe tudo para fora. A consciência fê-lo carregar com mais. 

E caminharam para Lisboa. Não é que estivessem muito longe, mas até à Baixa ainda ia um bom bocado. Falaram bastante. O Joel explicou-lhe que os Braços eram a força bélica do Império. Havia os soldados como ele e os Braços. Gozou que não sabia se eram elite com armadura bonita ou autónomos; e as Mãos eram os generais que lideravam essa força. Não eram muitos, mas cada um tinha uma autoridade tremenda e era uma honra servir com eles. Havia outros escalões mais altos, mas estes eram dos poucos com tomates para sujar as mãos - daí serem as Mãos.  
Pés, Pernas faziam o país andar. O Imperador era a Cabeça, que vive no Coração do Império e por aí. 
“Política, sério. Também não entendo muito.” 
“No meu lado não é muito diferente: temos um presidente. Mal comparado é a Cara daqui. Só serve para as fotografias.” 
No cinzento das pequenas horas do dia, os dois amigos riram ao ponto de quase poderem acordar a vizinhança. 
“Serias preso por dizer isso” sussurrou quando se apercebeu do chinfrim.  
E quando chegaram a Lisboa, o Bernardo sentiu-se em abraçado por paisagens familiares. Rodeado por prédios num mundo, rodeado por prédios noutro mundo.  
Continuava a odiar Lisboa, mas agora já se orientava bem. E continuaram a marchar sempre para baixo, para o Tejo, com a sorte nos pés porque horas depois dois Braços descobriram o carro parado. 
Começava a haver movimento e cheiros de um novo dia. E muito barulho. As pessoas iam e vinham e ziguezagueavam nas ruas. Falavam alto, resmungavam e rabejavam para os trabalhos. O tremor familiar do metropolitano existia naquele mundo – e às 11 horas estavam onde era a linha verde da sua realidade. E sempre para baixo sem chegar a ver o Martim Moniz, só casas clonadas da primeira do corredor. Não havia aquela mistura rica de cores e vozes e aromas de outras culturas e histórias. Esta Lisboa era estéril e monótona e todos eram iguais até ao mais ínfimo das suas ideologias. 
Finalmente, a Baixa. Mas desta Baixa gostou. Primeiro, porque conseguia andar! Era tudo tão tradicional e... primitivo, quando tomou consciência do que acontecera na Praça... 
Encontrar a livraria foi um piscar de olhos. E era quase hora de almoço quando entraram na sombra da loja. 
Havia pessoal jovem lá dentro. A ler e a comprar. E interessados em tomos grossos e com muitas letras e poucas imagens. E pagavam com notas contadas e saíam agradecidos. Velhos sentados nos sofás batidos para soltar o pó, liam os jornais do dia; livros de colecções numerosas. Uma viagem rápida pelas prateleiras não o levou ao escapismo. Havia várias disciplinas e romances regulados, mas para um mundo após outros mundos: zero fantasia. 

Desistiu e aproximou-se do empregado, enquanto o amigo vasculhava a categoria bélica. 
“Bom dia, estou à procura de um livro... de Ciências.” 
“Bom dia,” respondeu o empregado seco da Bertrand. “Podia ser mais específico?” 
“Sim, desculpe...” Inclinou-se sobre o balcão. “Sobre a possibilidade de outros mundos.” 
“Deve estar enganado.” Além de seco estava com uma cara de nojo pomposo. Deve ser por trabalhar na livraria mais antiga do mundo. 

O Bernardo remexeu nos bolsos com uma ideia na cabeça e extraiu o anel azul. 
“Talvez isto ajude?” 
A boca do empregado abriu-se como o túnel dos tesouros e fechou-se rapidamente para os esconder. Puxou dos óculos pendurados ao peito e ajustou-os à cara e por um segundo, o Bernardo viu a máscara da cara a desfazer-se. Toda secura, o nojo e o nariz empinado sumiram numa miragem. Deixou escapar um sorriso no canto dos lábios, mas rapidamente o cobriu de tons profissionais. Afinal, estavam os dois na livraria mais antiga do mundo. 
Puxou de um panfleto exposto no balcão e empurrou-o na direcção do Bernardo. 
“Desculpe, mas não dispomos de livros de fantasia” devolveu, mas com um dedo numa foto. Era uma loja e um outro local: A Tenda da Ninfa. 
“Obrigado.” Aceitou o panfleto cultural e reparou que a foto era a porta de uma loja.  

Com mais questões do que respostas, o empregado tinha sumido noutro cliente. 
O Bernardo foi encontrar o amigo a folhear um livro fotográfico e quando lhe perguntou se tinha novidades, este só lhe mostrou o panfleto, mas podia ter-lhe mostrado uma mala cheia de dinheiro. A cara do amigo era a cara do emprego quando vira o anel. Pegou na mão do Bernardo e correram loja fora, deixando o livro aberto no sofá. Pouco depois, o mesmo empregado voltou para o arrumar. Sorria por dentro, hoje o dia estava a ser interessante. 

Engraçado estas coisas do destino, às vezes existe para foder uma pessoa, mas às vezes até que sopra a favor. Sintra estava em festa segundo o panfleto e nessa semana ia haver concertos e numa das fotos das bandas estava a sua Vera. 

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | DEZASSETE

COPS

O borrão no céu nocturno desceu ao parque da estação de serviço e os dois polícias foram receber a Porcelana Branca.
Aproximaram-se com bastões luminosos para indicar o caminho à general que desceu com quatro Braços.
A estação de serviço não fechava, e àquelas horas só viam um ou dois clientes, grande parte camionistas, mas naquela noite estavam lá todos. A polícia, a ambulância e uma televisão.
A Taisa percorreu as filas de carros e parou quando um dos guias lhe apontou o dos suspeitos. Aproximou-se e espreitou pelo vidro.

 Acordaram-me para isto... fazer de polícia... 

“Levaram o carro da vítima, General” comentou um dos polícias.
"E onde está ela?” Ali. Na ambulância. Venha.

Estava fora da sua armadura, fora da fama, mas conseguia ser imponente e os homens ali respeitavam-na, temiam-na. Ou talvez aos Braços que a seguiam. Tinha o cabelo preso, de novo ao peito, mas vestia roupa de viagem, com uma espada curta à cintura. Um dos Braços carregava-lhe a lança e os três pareiam estar desarmados.
Seguiram para as traseiras da ambulância onde a equipa médica a esperava e ao sinal da autoridade, abriram a porta e puxaram da maca, com o corpo fechado no saco.

Quem fez isto, fez um lindo serviço. Que querem que diga agora? 

Afastou-se para os seus Braços e distribuiu instruções. Dois ficaram com ele e os outros seguiram para a estrada. E caminharam para a noite.
Um dos polícias fechou o saco e ditou o historial da vítima de um bloquinho branco: o nome do rapaz, onde tinha nascido e acabado por servir etc. O básico, mas havia uma coisa que não entendia, disse ao coçar o queixo com a caneta.
“A companheira da nossa vítima disse que ele tinha morrido em combate.”
“Não faz sentido” complementou o colega. “Sabe de alguma coisa?”

Interessante. Alguns fugiram. 

“Não” respondeu seca e firmemente. “Quero falar com a outra vítima.”
“Por aqui.”

Os dois polícias sacudiram os bastões para os dois outros colegas que barravam a entrada à jornalista que tentava espreitar ou sacar informações do caso.
“Que faz aqui um civil?” Questionou a Taisa quando se encontrou junto da mulher que arregalou os olhos ao ver a própria Porcelana Branca a presidir um homicídio.
“Que faz aqui a Porcelana Branca a presidir a um homicídio?” Devolveu no tom falso que todos já conheciam. Rita Esteves Cardoso, repórter cor de rosa, repórter da satisfação instantânea. Ninguém sabia como, mas a cabra chegava sempre primeiro, e todos no meio já lhe conheciam as manhas. Havia rumores de que pagava bonito a alguém para ter estas dicas ou fodia como ninguém - não obstante, ali estava ela de câmara na mão.
“Esperem! A menos que não seja um simples homicídio? Que outra razão haveria para chamarem uma Mão?”

Eu punha a minha mão na tua cara... 

“Tirem-na aqui, por favor.”
“General, por favor. Uma palavra e juro, juro que saio!” Parecia desesperada, honesta como se a vida e a carreira dependessem daquela palavra.
A Taisa encarou-a com um sorriso neutro, dando-lhe uma falsa esperança de que ia cooperar.
“Proíbo qualquer declaração. Não a quero ver quando sair.” Sem exclamações ou levantar a voz. A guarda abriu caminho e deixou-a passar pela porta com a jornalista a esticar-se para espreitar. Berrou qualquer coisa, mas a porta fez o favor de a abafar.

O empregado estava atrás do balcão. Secava uma pilha de pratos brancos quando a Taisa entrou na sala e meteu-se em sentido quando a viu. Os guardas distraídos imitaram de seguida, mas só uma não reagiu com a presença da Mão.
A agente estava sentada numa cadeira junto à da Ana. Tinha-lhe oferecido uma manta e uma refeição da estação. E ela bebia uma caneca de café negro, sem porcarias a adoçar. Ela era durona, até na sua cafeína.
“General Taisa. Ana” apresentou as duas. Deixou a caneca em cima da mesa e inclinou-se para a vítima e falou como se a outra não estivesse perto. A General deveria sentir-se incomodada e insultada por estarem a bichanar na sua presença, mas havia uma missão no seu sistema:

Despachar esta merda e voltar para a cama. 

“Disseram que tinham algo a reportar” comandou-as.
“Vá lá, querida. Não falaste comigo, mas tens de falar com ela.” A agente tinha a mão nas costas da Ana e esfregava-a calorosamente, com confiança e para a tranquilizar.
Por entre a manta, os olhos da Ana apontaram para cima e encontraram a mulher general, uma das Mãos. Descobriu os dos Braços atrás e decidiu que aquilo era mesmo a sério...
“Sei onde a Frederica Da Assunção está.”
“Sério?” E tudo começava a fazer sentido.
“Hum...” olhou para o chão. Hesitou. “Sei de quem sabe dela!”
“Onde é que ficamos?”
“Chama-se Bernardo. O amigo chama-se Joel e foi ele que matou o meu namorado. O Bernardo ficou comigo e contou-me que a viu em Salvador e escondeu-a numa porta.”
“E contou-te porque?”
“Contou-me enquanto o amiguinho matava o meu namorado!”
“Para onde foram eles?”
“Lisboa. Uma livraria qualquer.”
“Disse mais alguma coisa?”
Sacudiu a cabeça. A Porcelana Branca virou-se para sair quando foi chamada pela voz da Ana. Não tão frágil como há minutos, mas calma, monocórdica.
“Vou ser recompensada?”
“Sim.”

Prioridades... 

E continuou para a porta. A agente aconchegou-a na manta; a jornalista estava no outro lado da estada de câmara na mão e a ambulância tinha voltado a Lisboa. Um carro acelerou pela estação e desapareceu para a madrugada.
A Taisa e os dois Braços regressaram ao dirigível que tomou as alturas e zarpou.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | DEZASSEIS

We Were Soldiers


O homem bateu ao de leve na ponta do cigarro. 

A cinza solta caiu no chão, num montinho, e devolveu-o à boca, sugando o calor. Um pirilampo rúbeo surgiu na berma da estrada e desapareceu. O homem expulsou o fumo para cima. 
“Aquilo foi de loucos, viram?” Perguntou ao Joel que esfregava o tronco para se manter quente. 

 O Bernardo e a namorada do homem ficaram no carro a conversar enquanto os outros dois tinham voltado para o motor do carro avariado. O casal Ana e Mário tinham saído da estação uns cinco minutos depois. A emissão tinha sido cortada quando começaram a remover os corpos, o velho continuava a rir e o empregado tinha voltado para os seus ovos. Não estavam ali a fazer nada: pagaram e piraram-se. Que sorte terem seguido a mesma estrada para os encontrar ao ali... e ao frio... 

"Vi muita merda na fronteira, mas nada assim tão... falta-me a palavra!” Tirou o cigarro dos lábios. “Gratuito! Entendes?” 
“Serviste?” Questionou o Bernardo. 
“Afirmativo. Elvas. Tu?” 
“Chaves.” 
“Outro homem das bordas. Manter os espanhóis fora, não é?” 
“Afirmativo!” Os dois soldados riram e quando riam, afugentavam o frio. “É, mas parece que nós também ficámos de fora. Não é que cheguei a casa e tinham dito que...” 
“Tinhas morrido?” completou o Mário. A cara de espanto denunciou-os. 
“Tu também?” 
“Eu também, amigo. Os meus pais pareciam que estavam a ver uma assombração a passar pela porta!” Deixou escapar uma gargalhada sonora. 
“A minha mãe quase que me desancou à porrada. A minha noiva sumiu para Lisboa. Foi uma alegria. Na verdade, eu e o Bernardo estávamos a ir ter com ela!” 
“Nisso tive sorte, a minha ainda estava por casa. Quando me viu ia morrendo ela.” 
“Mas porquê?” 
“Fácil.” Atirou o cigarro ao chão e pisou-o. “Dinheiro e patriotismo. Mais mortes igual a menos salários. Mais mortes igual a mais ódio pelo inimigo.” 
Mas o outro não respondeu. Olhou para o chão e esburacou-o com a ponta da bota. 
“É por isso que nos andam a matar.” E o Joel saltou quando ouviu isto. “É verdade. Fomos atacados pelos Braços. A minha unidade teve sorte porque estava na frente e eles vieram por trás. Tivemos todos os avisos.” 
“Espera!, Foi a Voz que nos traiu e atacou. A Voz está morta!”  Bradou o Joel.
“Pode ter sido. Pode não ter sido. Os mortos não contam histórias e não sabemos a Mão que os liderava.” 
“Agora vais dizer que uma das Mãos joga para o outro lado.” 
“Ouve, amigo. Não estou a dizer nada, mas quando cheira a fumo há fogo. Camaradas mortos, mais Braços no terreno, o que vimos na televisão e a recompensa pela Frederica.” Tirou o maço amolgado do bolso e puxou de outro cigarro com os lábios. Raspou um fósforo e aproximou-se da pequena chama confortável. 
“Parece que voltámos à idade média. E o teu amigo parece que sabe alguma coisa.” Sacudiu o fósforo até à escuridão e deixou-o no chão. 

Havia aqui um dilema: as espadas estavam no chão do carro, mas tinha a navalha no bolso traseiro das calças. E tinha um braço chocho. 
“Não fui eu que ouvi. Foi a minha Ana. Algo sobre saber da Frederica.” E o tipo parecia nem dar conta dos movimentos demorados do Joel. Falava com uma casualidade como se não dissesse nada de mal. 
“Não” corrigiu o Joel. “Não acho que tenha dito isso. Foi do choque de ver a miúda a morrer.” Os dedos a penetrarem lentamente na boca do bolso. 
“Foi horrível, eu sei, mas ela tem quase a certeza do que ouviu. A moça tem ouvidos de tísica.” A ponta dos dedos a sentirem o frio do cabo. “Ouve, eu sei: é teu amigo, mas imagina a pipa de massa que íamos ganhar.” 
Chupou o cigarro com excitação e engoliu o fumo ao sorrir. 
“Podíamos ajudar muitos camaradas iguais a nós!” 
E a ideia até que era interessante... Uma que já lhe tinha passado pelos olhos, mas não desta forma. 
E agora falou ele, “Deixa ver se entendi: achas que o Império nos traiu, mas queres receber dinheiro desse mesmo Império?” 
“Um homem tem de comer. E uma mulher! Ela come bastante.” Cuspiu uma bola de saliva para o chão e a cinza soltou-se para as calças. 
“Não, assim não. Obrigado pela ajuda, continuamos a pé.” Preparou-se para regressar quando ouviu o outro a esmagar a beata. 
“Não sejas assim! Pensa bem. Pensa na tua mãe!” 
O Bernardo sentiu os dedos gelados do camarada, do soldado morto, do Mário no ombro e foi como se o gelo se propagasse no seu ser. Puxou a mão para fora e fez a lâmina disparar do cabo para o ar da noite, para o pescoço do outro homem. Resistiu a entrar, mas foi até ao fundo e tirou-a. 
O sangue espirrou num arco e jorrou pelo pescoço, por dentro e por fora da roupa. O homem estava a tentar falar, mas os sons que lhe saíam eram grunhidos misturados com bocados de palavras soltas. Abria e fechava a boca como um peixe a engolir ar.  
Cambaleou e tropeçou quando tentou apanhar o Joel. Primeiro de joelhos e depois de cara ao chão com um crac de algo que não devia estalar. Uma poça negra alastrou-se do pescoço e o homem que terminou o Mário, deu um salto tosco para longe e acelerou para os carros. 

 A Ana cotovelou o Bernardo para acordar, mas algo estava errado quando só viu o Joel a regressar. Não saiu do carro, mas repetiu os seus pensamentos ao Bernardo que reparou na expressão do outro. 
“Tudo bem?” Mandou-lhe. 
Mas o Joel ignorou e foi directo à carrinha buscar a mochila e o rolo de espadas. Galgou a distância até ao carro onde estavam e atirou com tudo para o banco de trás. E com a expressão dura, lábios chupados e olhar vazio, rodeou o carro até ela. Puxou a porta e pediu-lhe para sair. 
Ninguém lá dentro entendia o que se passava, apenas olharam para a cabeça careca, mal iluminada pelo carro e pela lua. Pediu-lhe de novo para sair, mas com mais autoridade e quando ela perguntou pelo namorado, o Joel puxou-a pelo ombro e atirou-a ao chão. 
Entrou no carro e quando viu as chaves na ignição, ligou o carro e acelerou para a estrada, deixando a mulher a berrar no retrovisor. 

terça-feira, 15 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | QUINZE

Fast Car


Não havia vivalma na estrada e a única carrinha cortava a noite. 
O condutor seguia tenso e colado ao volante, enquanto o outro vinha a sintonizar a rádio. Procurava alguma emissão sobre a execução de há horas, alguma coisa que fizesse sentido ou só música. 
O Joel não tinha dito mais nada desde a estação e o Bernardo não puxou o fio. E ainda há horas achava que este mundo era porreiro, mas, bem, o porreiro tinha levado um chuto no cu quando a televisão exibiu a execução de uma família. E o povo a celebrar.  
Já no seu, as pessoas também adoravam uma boa execução em praças. Havia coisas que não mudavam. 
“Se calhar não ouviram nada” falou o condutor pela primeira vez em quilómetros. 
“Achas?” O outro estava um nada preocupado por osmose. 
“Acho. Acho. Tu viste-os colados à televisão, Bernardo.” 
Aham, acenou sem resposta. Não tinha a certeza. Às tantas, o velho ouviu-lhe os guinchos histéricos; ou o casal; ou o empregado. Qualquer um deles iria botar as mãos à recompensada. 
É ela, é ela. Conheço-a! Mas que raio, meu! Estúpido, estúpido. 

“Estúpido.” 
“Então?” Estava a sorrir mais relaxado. Olhou para o amigo e regressou à estrada. “Estamos longe. E mesmo que tenham ligado, vê lá, não têm nomes nem nada.” 
“Viram a carrinha...” 
“Muitas Marias...” 
“Ouve, o velho estava com uma erecção imperial; os putos com uma para se comerem e o dono estava excitado com os ovos. O que é que sabem eles?” 
“Joel? O que aconteceu?” 
O soldado suspirou. Não conseguia acertar na emoção e saltava de exasperado para pensativo, e bufava. Mordeu os lábios e pensou mais um bocado. Queria responder com honestidade ao amigo, mas a honra e o dever proibiam-no. Estaria a trair o Império... mas, o Império tinha-se adiantado. E tentou explicar-lhe o melhor que podia: 
“As minhas guerras começam pelo que aconteceu na televisão, entendes? As pessoas pensam demasiado, conspiram, traem e acabam mortas.” 
Tomou o fôlego, enchendo o peito e pegou no discurso. 
“Aquilo foi uma mensagem à tua amiga. A Cabeça tem de ter a Frederica, Bernardo. E o que a Cabeça quer, a cabeça tem. A mensagem foi para os últimos Da Assunção, mas somos nós, os Braços, as Pernas e os Pés que a vão entregar. E isto não vai acabar por aqui...” 

Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga... 

O condutor olhou-o como uma mola e para a estrada. 

“Hã?” 
“Nada... Ouve, eu tenho de ser honesto contigo. Não entendo nada do que disseste. De cabeças, braços, pernas e pés. A Frederica... A Frederica dizia o mesmo, mas estou tão perdido, meu...” 
“Como assim? Bateste com a cabeça?” 
“Não, pá. Eu...” Contar à Frederica tinha sido tão fácil pelo simples facto de ela ter visto em primeira mão. Contar a um soldado experiente e fixo em ideias? Complicado... “Eu não sou de cá.” 
“E?” 
“Eu vim de outro mundo.” Abriu a mala e cavou pelos bens para encontrar o telemóvel. “Sabes o que é isto?” 
“Não faço ideia...” o carro começou a abrandar. “Algum rádio? És algum espião?” 
“Não, porra!” O condutor estremeceu. “Vim de outro mundo! Havia uma porta no meu, em São Salvador. Abri e vim dar aqui. A Salvador! E foi quando vi a Frederica.” 
“A Frederica Da Assunção em Salvador?!” 
“Sim! Foi emboscada por braços e por uma Taisa.” 
“Com um caraças, amigo! A primeira coisa que fazes é tramar a vida à Porcelana Branca! E já percebi o mergulho quando viste o dirigível.” Estava a rir, mas um riso alto e forte e natural. Havia pequenas flores húmidas nos olhos do Joel e era a primeira vez que o via a rir assim. 
O Bernardo imitou por contágio. Ou estavam a ficar malucos ou aquilo tinha uma piada do catano. A primeira coisa que fez foi foder com o Império. 
Estavam cada vez a andar mais devagar. 
“Joel, o Império é bom ou mau?” 
O condutor encolheu os ombros, “Só quero ser pago.” 

A carrinha travou bruscamente e começou a soluçar. Arrancou aos soluços e voltou a parar, deslizando sem forças e virando para a berma. E morreu. As luzes aguentaram uns segundos, mas a noite devorou-as e deixou-os na escuridão. 
“Merda,” O Joel resmungou e esmurrou o volante. “Merda!” 
O Bernardo derreteu no banco, abraçado à mala e ao telemóvel. Apenas se ouvia as duas respirações. 
O bafo branco a escapar-lhe dos lábios como fantasmas. 

O Império é bom? O Império é mau? Só quero ser pago... 

Passaram-se horas ou só minutos. No escuro, o tempo não tem forma. Mas passou-se algum tempo até aparecer alguém. 
O Joel foi o primeiro a acordar com as rodas a pisar a terra. Acordou o outro e fez-lhe sinal para não se mexer. 
Tirou a espada do chão e deslizou pela porta, escondendo-a nas costas. 
Os faróis no máximo não deixavam ver para dentro do condutor, mas o Joel avançou com o instinto militar. Braço à frente dos olhos e arma escondida. A luz desapareceu e as duas portas abriram. 

“Estão bem?” Perguntou o rapaz que estava na estação de serviço. A companheira meteu-se atrás dele. “Precisam de ajuda?” 

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | CATORZE

Menina e Moça


Esta Lisboa não estranha para a Porcelana Branca. 
As ruas e ruelas, os cantos e recantos e os melhores sítios para molhar o bico. 
Tinha casa na capital, um feito que a deixaria a mendigar no outro lado, mas que agora lhe dava jeito para despir a armadura alva e deixar a lenda espalhada no chão do quarto. 
Deixou tudo com a criada, inclusive o pagamento e um sorriso e saiu para a rua. Não se sentia despida sem a armadura, mas usar uma roupa com as cores que queria dava-lhe outro poder. Os lábios escuros; o cabelo em trança, caído por cima da camisola curta; um casaco de cabedal a rematar e calças de ganga. Apesar de os pés pedirem misericórdia, não dispensava das botas, com uma surpresa escondida no cano. Carteira, chaves e, claro, escudos para estoirar em álcool. 
Caminhou apressada, mas em paz pelas ruas iluminadas, grupos ébrios e felizes e a celebrar o espectáculo da tarde. Cruzou-se com sombras e sussurros de outros que a amaldiçoavam, mas agora não estava a trabalhar e não era com ela. 

Enfiou-se por um beco sem nome e tomou a primeira porta. Abriu a madeira pesada, entornando a luz artificial pela calçada e desapareceu. 
Sempre que vinha a Lisboa, era ali que ia para um jarro de cerveja e sangria. Às vezes ao mesmo tempo para correr mal. As pessoas conheciam-na ali, mas não lhe dirigiam a palavra com medo de dizerem a coisa errada e acabarem na outra ponta da navalha. Então calaram-se quando ela passou pelas suas mesas e ela devolveu a mesma recepção. Sentou-se ao balcão e chamou o emprego que deslizou para a General Taisa que, na verdade, nem era o nome verdadeiro dela. Mas da boca dela ninguém iria saber a verdade. Se uns desbobinam bêbados, ela era um túmulo. 
Sorriu ao senhor de há anos e pediu o costume com um prato de moelas a acompanhar. Em menos de dez minutos já estava servida e a rotina no tasco decorria com normalidade. 

Pouco depois, a porta abriu-se e um rapaz de cabelo negro despenteado e sorriso fácil entrou. As pessoas também o conheciam e deram-lhe o mesmo tratamento da Porcelana Branca. Acenou-lhes e foi-se sentar no banco livre junto à colega. 
“Pata de Coelho, já passa da tua hora de dormir...” 
“Caramba, muito gostam das vossas alcunhas!” Chamou o empregado e pediu um Porto. 
“É porque dás sorte, colega. Devias estar orgulhoso.” 
“Sim, sim, deixa-te de tretas.” 
Ela levou o copo de cerveja aos lábios e bebeu até lhe faltar o ar. O companheiro recebeu o copo e bebeu mais delicadamente para prolongar. 
“Que achaste de hoje?” Perguntou. 
Ela bateu com o copo na mesa, deixando o bafo gelado daquela ronda sair da sua pessoa. Olhou para o pulso despido, “Já passa da minha hora de serviço. Pergunta-me amanhã, tá?” 
Deu uma garfada e deixou o rapaz a olhar impávido. 
“Se continuas a comer assim, estragas a tua reputação.” 
“Não estou a trabalhar, o que é que queres?” Ripostou a mastigar, um fio de molho a surgir-lhe aos lábios que ela limpou logo. 
“Taisa, fomos os únicos lá. Com os outros fora, achei que pudéssemos falar um pouco” deu um gole na sua bebida e continuou depois de lamber os lábios, “e se me perguntasses o que achei, diria que foi escusado.” Terminou muito baixo, matreiro. 
Não tinham receio que os ouvissem. Ali no tasco eram cegos, surdos e mudos e as pernas tinham corda para abandonar as mesas da vizinhança. 
E com isso, a Taisa olhou-o nos olhos. Sem cerveja, sem moelas. Apenas o olhar de uma mulher no limiar da paciência. 
“Quase que a tinha, Xavier. Entendes isso?” O jarro estava quase vazio e os vários anéis brancos escorriam para o fundo. 
“Os Braços tinham-na... e depois sumiu. E tu sabes que ninguém lhes foge.” A Pata de Coelho acenou em afirmação. 
“Agora temos uma caça ao homem” comentou a Porcelana Branca. 
“Uma caça ao homem.” Repetiu o outro. 
“Passaram meses! Sei lá onda anda...” 
“Isso é fácil. Está com o tio.” 
“Falas a sério?” Perguntou com o bocado de pão ensopado a meio caminho da boca. “E ele vai avançar?” 
“Depois de hoje? Silenciámos a Voz, a esposa da Voz e os filhos da Voz. Não esperaria outra coisa.” Acenou ao emprego para encher o jarro à colega. 
“Mais alguém sabe disto?” 
O silêncio dele foi resposta suficiente. 
“Vou fazer-te a vontade, cara Porcelana: estou com um bom pressentimento acerca disto e acho que vamos ter sorte.” Levantou-se do banco e deixo cinco contos ao balcão. 
“Agora sim, está na hora de dormir. Voltei a encher-te o depósito e despeço-me assim.” 
“Xavier,” chamou-o antes de sair pela porta. O homem virou-se a sorrir. “Nada, boa noite.” 

E quando a bebida terminou e o prato lambido. A Tasia apressou-se para casa, tropeçando nos pés numa espécie de teatrinho para as massas noctívagas. As celebrações continuavam e as sombras acercavam-se. Lisboa menina e moça era uma panela de pressão no ponto. 
Chegou à casa escura sem criada e encarou a armadura branca montada no expositor, branca e a reluzir. 
Havia uma coisa que queria perguntar ao Xavier, à Pata de Coelho... Havia um dizer no mundo dela que dizia: não deixes que a mão esquerda saiba o que faz a direita. Ela estava a jogar o seu jogo, e ele também... 
Deitada no sofá, com o casaco a apertar, tirou de um telemóvel concha do bolso. 
Ligou-o. Meteu o PIN e apareceu o papel de parede, uma mulher de cabelo vermelho rodeada de fogo. Pousava de forma imponente e inspiradora, com aquele sorrio de nós conseguimos! Taisa. 
Abriu as mensagens e havia bastantes por ler, todas recebidas há meses quando a Frederica Da Assunção desapareceu pela porta aberta. 

domingo, 13 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | TREZE

Aficionados


Nem era muito tarde para a pouca afluência da Corda ao Sapato, a estação de serviço à saída de Coimbra. Pelo menos outra coisa era igual ao seu mundo, os nomes parvos e os trocadilhos à Portugal.
“Amigos, o que vai ser?” Saudou o empregado ao ver os rapazes a passar pela porta. 
“Boas, o que tem por aí?” O Joel foi o primeiro a cumprimentá-lo, O Bernardo só acenou. Outro casal estava sentado ao fundo da sala a conversar, mas interromperam por segundos para os ver a chegar; havia um velho sozinho a ler o periódico e outra família a comer de pratos bem servidos. 
“Então, temos sandes de ovo, ovos mexidos, ovos cozidos, ovos escalfados, podemos estrelar uns ovos, omelete...” continuou. 
“Pergunta-lhe se tem algo com ovos” troçou o Bernardo. “Arranja-me uma bifana e uma cerveja.” Apalpou os bolsos para sentir a memória distante de trocos perdidos. “Depois pago-te."
“Não me deixes esquecer, mas acho que ainda tenho uns mil escudos comigo.” 
Avançou para o balcão que ainda enumerava todas as iguarias de ovo, agora nas sobremesas. Devia mudar o nome ao estaminé... 

O Bernardo sentou-se numa mesa livre, à janela, que dava para ver a carrinha parada. Outros carros estavam à vista e as poucas árvores começavam a dançar com o vento que levantava. 
Encontrou a televisão ligada para uma multidão, sem poder ouvir o que se passava. E não demorou até reconhecer a Praça do Comércio pelos seus detalhes bruscos e pelo D. José I a cavalgar por cima da turba. 
“Chefe, meta mais alto!” pediu a voz do velhote. 
Sem dar conta do amigo a sentar-se, o Bernardo já estava colado ao evento em Lisboa. 

Olha-me só para as pessoas, estão loucas, Simião! 
Bem o podes dizer, estão à espera há horas. 
Ainda bem que está fresco ou teríamos outra revolta em mãos, Augusto. 

As duas vozes sem dono riram-se um daqueles risos falsos e continuaram a comentar a afluência à praça. A câmara focou os dois palcos, com vista para o rio. Um com cadeiras viradas para o público e outro vazio. 

Parece que estão a chegar, Augusto. A Ilustre e Venerável Família Real. 
O nosso Amado Imperador, Sebastião II. A Cabeça erguida do Império. 

Alguém fungou. 

Fico sempre emocionado quando o vejo, Augusto. 
É um orgulho ser seu contemporâneo. Não podia pedir melhor tempo para viver. 
A sua esposa Raquel. Bela como a primeira manhã de um novo ano, como o nascimento de uma nova vida, tomou a mão do nosso Imperador para saudar todos os Pés e as Pernas que vieram assistir a este maravilhoso evento. 
Os filhos, Simião: Francisco, Sebastião III, Anabela, Carlota. Todos magníficos e fontes de esperança para um Portugal próspero. 
Sabes, Simião. Já tive a oportunidade e o privilégio de conversar com o Francisco. 
A sério, Augusto? Tens de nos contar tudo!
Um dia destes, um dia destes, meu caro. 
Olha, as Mãos. A General Taisa, a Porcelana Branca. 
A estrangeira... 
Então, Simião. Não sejas assim! Olha, o Vasco, A Pata de Coelho. Se está aqui, quer dizer que tudo vai correr bem! 
Só as duas Mãos? Estávamos à espera de mais. 
As outras Mãos estão longe a servir o Império, Simião. O Sol da Meia-Noite, A Queimada e O Lacrau. 
Augusto, se tudo correr bem hoje. Será uma vitória decisiva para o Império e teremos as Mãos de volta...

E enquanto a câmara aérea pairava pela praça, focando as caras jubilantes dos lisboetas, um grupo de Braços subiu ao palco vazio. Vieram todos de branco, aos pares e caminhavam como crianças com frio, a tremer. Havia algo não natural na sua presença e com a cara coberta, a força do império comandava autoridade.
Então subiram aos pares, com os da dianteira a carregar uma caixa de madeira. 
A câmara focou a caixa. Era uma arca de madeira polida, pesada pela forma como os Braços vinham a andar. Os outros seguiram-nos e dispuseram-se virados para o público que os saudou com urros e vivas. 
Os Braços seguintes vinham a acompanhar um homem bonacheirão, uma mulher, dois homens adolescentes e uma menina. Estavam bem vestidos em contraste com os filmados na praça, mas vinham descuidados e por pentear e com um olhar duro e a tremer. A câmara afastou-se para apanhar a família a ser empurrada para a frente dos Braços, o público a berrar, a praguejar e a chamar de tudo e mais alguma coisa. Os dois comentadores gozavam e riam e incitavam aos espectadores a fazer o mesmo. 

Nem quero acreditar que entrevistei aquele Umberto Da Assunção. Homem asqueroso. Horrível, Simião. 
Meu querido, Augusto. Nem quero imaginar a dor horrível que sentiste, mas já vai passar, já vai passar. 
Como ousa esse Umberto de ir contra o Império que tanto lhe deu? 
Eleições? Escolhermos o nosso líder? 
Simião e todos os que nos vêem, nós podemos escolher o que vestir e o que comer, não quem amamos. Não escolhemos amar o nosso querido Imperador, nascemos para o amar! 

Um Braço abriu a caixa e revelou uma lâmina. Não muito curta, mas também não muito longa a ponto de ser um sabre. Passou a lâmina ao Braço próximo que a foi passando até cinco estarem munidos com as armas da arca. 
O homem a quem chamaram de Umberto clamava ao público, mas não se percebia o que dizia porque as pessoas falavam mais alto e agitavam as bandeiras do Império nas cabeças dos outros. Saltavam e dançavam como num concerto. 
Os Braços dispostos em fila forçaram a família a cair de joelhos, menos a criança que pôde ficar de pé - começou a chorar e um dos jovens deu-lhe a mão. A mãe implorava de braços esticados para a filha, mas um dos Braços forçou-a quieta. 

Vai começar, Simião. 
Nunca pensei que este momento chegasse, Augusto. 
Pena que a filha mais velha tenha escapado. 
Tivemos a Frederica nas mãos!, mas alguém ajudou-a a escapar. Se alguém em casa tiver informações acerca do seu paradeiro ou dos seus cúmplices, entre em contacto com as autoridades e será recompensado para lá dos seus sonhos.

Uma foto familiar surgiu no canto do ecrã. 

 “É ela! Joel, eu vi-a em Salvador!” exclamou o Bernardo para o amigo soldado que não arredava a atenção da emissão. 
“São os pais dela? Joel, o que vai acontecer?” 
“Deixa-me ouvir, pá!” respondeu ríspido e o outro calou-se. Todos na estação estavam colados em frente à televisão. O velho esfregava as mãos e sorria que nem um pervertido; o casal via calado sem expressão e o empregado, com as mãos no avental, tinha-se esquecido dos ovos. 

Cinco Braços avançaram para trás da família Da Assunção. Uma mão puxou-lhes o cabelo e a cabeça para trás e olharam para a família real e para Sebastião II que acenou solenemente. 
Foi rápido e misericordioso para os traidores do Império: a lâmina roçou o pescoço e um jacto de sangue espirrou para os ares da praça. 
O silêncio ansioso durou segundos até registarem o que tinham acontecido, depois a multidão explodiu em aplausos. 
Os Braços ainda tinham as cabeças nas mãos, os olhos revirar para a cabeça, o babete de sangue a espargir pelas roupas e um dos jovens com forças para levar as mãos ao golpe e a tentar estancar o sangue. 
A menina foi erguida em bicos de pés, fazendo com que o sangue fluísse mais rápido. Tinha sido a primeira a ir e caiu no palco, com as perninhas a adejar. Ela que não tinha idade para pensar em políticas, golpes de estado ou reformas e que só queria brincar, estudar e talvez aprender a desenhar. Ela era a irmã mais nova da Frederica que estava algures e sozinha no mundo, a ver a família a apagar-se em directo. 

O Joel agarrou na mão do Bernardo e puxou-o da mesa. 
“Eu vi-a. Temos de voltar, Joel!” repetiu inconsciente de que o estavam a ouvir. Foi arrastado pelo estacionamento e contra o carro. 
“Entra. Já!” 
O Bernardo enfiou-se no carro em silêncio e aguardou que o outro desse a volta. Nisto, a realidade caiu e a bifana subiu-lhe à boca. 
A porta do condutor bateu e ele deu à chave. 
“Fodasse, Bernardo. Se alguém te ouviu, vão-te reportar. Se vierem atrás de ti, vêm atrás de mim.... E eu não posso morrer duas vezes...”

sábado, 12 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | DOZE

Vida de Estrada

Os rapazes deram à anca e sacudiram as mangueiras daquela mija demorada. Riam à parva porque tiveram a bela ideia de competir a distância, com o Bernardo a vencer (e porque tinha bebido muito mais da litrosa que trouxeram do café)

A vida de estrada corria bem por ali: o Joel vinha a cantar ao volante e puxava pelo companheiro. A música também lhe era familiar e apesar de não decorar letra alguma, sabia que era dos Diabo na Cruz e que já os tinha visto ao vivo. 
Estava a gostar daquele mundo. Até agora, a comida e a música eram iguais, mas havia diferenças gritantes: Primeiro, em horas de viagem só viram dois carros. Quando questionou o amigo, a resposta até fora simples: não havia necessidade. Não trabalhas, não te dão um carro. Quem quiser viajar, vai de comboio ou dirigível que são baratos e chegam a todo o lado.
E aquela informação só veio empilhar ao que não sabia daquele mundo. Mais os braços, as mãos e o pânico da Frederica sobre a política do mundo do Bernardo, mas as peças juntavam-se aos poucos. 
Aquela versão de Portugal vivia num império, mas não estavam no passado, até aí era óbvio. Até tinha medo de perguntar pelo ano, não fosse dar nas vistas que não era dali. Mais, Salvador não tinha o São no nome, mas as duas eram semelhantes em casas e pessoas. E uma não tinha aberrações de piscinas e casas de emigrantes.
Na casa da mãe não havia televisão. Havia um telefone, mas não viu ninguém com telemóveis. Nem no café. Por essa razão, manteve o seu escondido.
Iam para uma Lisboa com nobres e universidades e o Joel não se calava com isso porque falava como a sua mãe. Só não falou da sua guerra, onde combateu, contra quem combateu e porque mentiram sobre a sua morte, mas no mundo de Bernardo, este vira muitos filmes...

"Estamos a chegar a uma estação de serviço. Paramos?” O Bernardo apontou para um sinal.
“Por mim. Bebia um café que nem te conto” respondeu o outro. “Ainda caio aqui.”
O passageiro ajeitou-se no banco e roçou os pés nas armas no chão. 
Do nada, todas as preocupações regressaram como nuvens negras prenhas de chuva. Primeiro, uma gota de aviso, ele estava longe de casa; a segunda, tinha de ir a Lisboa; a terceira, encontrar o homem dos livros e mostrar o anel azul. Voltar para casa e para o irmão antes de apanhar uma molha.
Mas quando se virou para o condutor, não viu a chuva, mas uma daquelas pessoas na rua que sorri e ri e acena, mas que esconde uma tormenta por detrás dos olhos.
Quis aproximar-se, fazê-lo falar sobre o que sentia, mas não tinha boca e só queria gritar para acordar.

A estação de serviço surgiu na próxima curva e a carrinha virou para o parque quase vazio. Havia pessoas a sair, uma família de três. A criança saltava nas mãos dos pais como um balão preso e ria muito alto.
Os dois, o soldado e o rapaz do outro mundo, desceram da carrinha para a gravilha do parque e o Bernardo sentiu o chão a fugir-lhe debaixo da sola. O Joel puxou de uma espada e fixou-a ao cinto.
“Não pode entrar com isso!” sussurrou o Bernardo, a tentar não levantar a voz.
O Joel parecia confuso com o que o outro disse, mas não ligou. Apertou o cinto e liderou o caminho. 
A outra família cruzou-se com os rapazes e o Bernardo reparou na arma que o pai trazia atrás. Naquele mundo, aquilo era normal...
“Esperamos problemas?” Perguntou quando alcançou o Joel.
“Sempre” respondeu animado. Empurrou a porta da estação e entraram os dois.
Ao menos o café sabia ao mesmo.

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