A Livraria Mais Velha do Mundo
“... E contaste-lhe tudo?” perguntou o Joel com a cabeça enterrada no volante.
“Perguntei-lhe sobre livrarias e a coisa escorregou...”
“Escorregou... Bernardo, eles queriam entregar-te...”
A noção súbita da asneira que fez correu-lhe pela vista como um animal a atravessar o trânsito de noite.
“Achas que eles vão falar?” perguntou a sentir a serpente da ansiedade a enrolar-se nas extremidades.
“Sim. Se não falaram já.” Expulsou todo o ar que guardava nos pulmões e susteve a respiração.
Ninguém falou nos próximos minutos. E os minutos roçaram a hora quando o dia começou a espreitar por entre os prédios. Havia aquele espaço ansioso e eléctrico - uma espécie de cofre onde o Joel decidiu guardar o destino do namorado.
Ergueu a cabeça e fixou o escorrega e o baloiço do jardim onde estavam parados. Havia uma saudade e um pesar naquele olhar demorado; a respiração deu lugar a um suspiro que carregava um conjuntivo.
Finalmente encarou o amigo, “E o que ela disse?”
“Bertrand.”
“O que é isso?”
“Uma livraria que também existe no meu mundo. É a mais antiga no mundo e não sei como não me lembrei...”
“Só fui duas vezes a Lisboa. Sabes lá ter?”
“Se for no mesmo sítio, sei.”
“E depois?”
“Tenho de mostrar este anel a alguém de lá e espero que me ajudem a voltar para casa.”
“E depois vais? Quer dizer... para o teu mundo?”
O Bernardo não respondeu, mas entendeu o silêncio das pausas do Joel.
Havia uma casa em Salvador para onde não podia voltar mais. Não era a primeira vez que tirava uma vida – como soldado, era esperado dele. Era o seu trabalho. Agora que estava fora, tirar uma vida era... errado. Se bem que, ele também estava morto.
“Vamos lá, amigo. Vamos primeiro à livraria e depois vamos ver da Vera.”
“Obrigado.”
“Prefiro que me contes tudo do teu mundo.”
“Há muita coisa que não percebo do teu. Mãos e braços?” Sacudiu os ombros a forçar um riso.
“Não é muito complicado. Vamos a pé. É melhor.” Foi o primeiro a sair e trouxe tudo para fora. A consciência fê-lo carregar com mais.
E caminharam para Lisboa. Não é que estivessem muito longe, mas até à Baixa ainda ia um bom bocado. Falaram bastante. O Joel explicou-lhe que os Braços eram a força bélica do Império. Havia os soldados como ele e os Braços. Gozou que não sabia se eram elite com armadura bonita ou autónomos; e as Mãos eram os generais que lideravam essa força. Não eram muitos, mas cada um tinha uma autoridade tremenda e era uma honra servir com eles. Havia outros escalões mais altos, mas estes eram dos poucos com tomates para sujar as mãos - daí serem as Mãos.
Pés, Pernas faziam o país andar. O Imperador era a Cabeça, que vive no Coração do Império e por aí.
“Política, sério. Também não entendo muito.”
“No meu lado não é muito diferente: temos um presidente. Mal comparado é a Cara daqui. Só serve para as fotografias.”
No cinzento das pequenas horas do dia, os dois amigos riram ao ponto de quase poderem acordar a vizinhança.
“Serias preso por dizer isso” sussurrou quando se apercebeu do chinfrim.
E quando chegaram a Lisboa, o Bernardo sentiu-se em abraçado por paisagens familiares. Rodeado por prédios num mundo, rodeado por prédios noutro mundo.
Continuava a odiar Lisboa, mas agora já se orientava bem. E continuaram a marchar sempre para baixo, para o Tejo, com a sorte nos pés porque horas depois dois Braços descobriram o carro parado.
Começava a haver movimento e cheiros de um novo dia. E muito barulho. As pessoas iam e vinham e ziguezagueavam nas ruas. Falavam alto, resmungavam e rabejavam para os trabalhos. O tremor familiar do metropolitano existia naquele mundo – e às 11 horas estavam onde era a linha verde da sua realidade. E sempre para baixo sem chegar a ver o Martim Moniz, só casas clonadas da primeira do corredor. Não havia aquela mistura rica de cores e vozes e aromas de outras culturas e histórias. Esta Lisboa era estéril e monótona e todos eram iguais até ao mais ínfimo das suas ideologias.
Finalmente, a Baixa. Mas desta Baixa gostou. Primeiro, porque conseguia andar! Era tudo tão tradicional e... primitivo, quando tomou consciência do que acontecera na Praça...
Encontrar a livraria foi um piscar de olhos. E era quase hora de almoço quando entraram na sombra da loja.
Havia pessoal jovem lá dentro. A ler e a comprar. E interessados em tomos grossos e com muitas letras e poucas imagens. E pagavam com notas contadas e saíam agradecidos. Velhos sentados nos sofás batidos para soltar o pó, liam os jornais do dia; livros de colecções numerosas. Uma viagem rápida pelas prateleiras não o levou ao escapismo. Havia várias disciplinas e romances regulados, mas para um mundo após outros mundos: zero fantasia.
Desistiu e aproximou-se do empregado, enquanto o amigo vasculhava a categoria bélica.
“Bom dia, estou à procura de um livro... de Ciências.”
“Bom dia,” respondeu o empregado seco da Bertrand. “Podia ser mais específico?”
“Sim, desculpe...” Inclinou-se sobre o balcão. “Sobre a possibilidade de outros mundos.”
“Deve estar enganado.” Além de seco estava com uma cara de nojo pomposo. Deve ser por trabalhar na livraria mais antiga do mundo.
O Bernardo remexeu nos bolsos com uma ideia na cabeça e extraiu o anel azul.
“Talvez isto ajude?”
A boca do empregado abriu-se como o túnel dos tesouros e fechou-se rapidamente para os esconder. Puxou dos óculos pendurados ao peito e ajustou-os à cara e por um segundo, o Bernardo viu a máscara da cara a desfazer-se. Toda secura, o nojo e o nariz empinado sumiram numa miragem. Deixou escapar um sorriso no canto dos lábios, mas rapidamente o cobriu de tons profissionais. Afinal, estavam os dois na livraria mais antiga do mundo.
Puxou de um panfleto exposto no balcão e empurrou-o na direcção do Bernardo.
“Desculpe, mas não dispomos de livros de fantasia” devolveu, mas com um dedo numa foto. Era uma loja e um outro local: A Tenda da Ninfa.
“Obrigado.” Aceitou o panfleto cultural e reparou que a foto era a porta de uma loja.
Com mais questões do que respostas, o empregado tinha sumido noutro cliente.
O Bernardo foi encontrar o amigo a folhear um livro fotográfico e quando lhe perguntou se tinha novidades, este só lhe mostrou o panfleto, mas podia ter-lhe mostrado uma mala cheia de dinheiro. A cara do amigo era a cara do emprego quando vira o anel. Pegou na mão do Bernardo e correram loja fora, deixando o livro aberto no sofá. Pouco depois, o mesmo empregado voltou para o arrumar. Sorria por dentro, hoje o dia estava a ser interessante.
Engraçado estas coisas do destino, às vezes existe para foder uma pessoa, mas às vezes até que sopra a favor. Sintra estava em festa segundo o panfleto e nessa semana ia haver concertos e numa das fotos das bandas estava a sua Vera.
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