Anel Azul
O Bernardo encontrava-se no café a brincar com o anel azul da Frederica. E milhentas coisas corriam loucas pela cabeça.
Outros homens e mulheres ocupavam as mesas do café; bebiam, comiam e ocupavam os minutos com conversas tensas.
O irmão tinha ido a casa, mas já voltava para conversarem. Teriam muito que falar depois de hoje; a Vera tinha ido para a casa do pai. De novo sozinho num mundo que não era o dele. Nem do irmão. Mentia, o Carlos pertencia mais a este mundo do que ao outro. Mesmo que ninguém soubesse que ele não era da zona.
As conversas no café eram quase todas sobre o Joel e os seus mercenários; e tinha calafrios cada vez que repetiam o nome dele. Não se dizia covarde: no outro mundo, se visse uma aranha conseguia matá-la sem problemas, mas encarar um grupo de pessoas armadas e lideradas por alguém que costumava estimar? Pois.
Quis recuar para trás do irmão Carlos quando a Vera disparou para a porta. O grupo rompeu-se em dois, com o pai aflito, mas ninguém a travou. Nem o grande Carlos.
Lá fora, a voz do Joel bradava disparates para abrirem as portas e não era a primeira vez que aparecia em Salvador para os picar. Ele e o seu bando de tolos.
Então, a Vera saiu pela porta em direcção do dono da voz. Se ela estava tão confusa como o Bernardo, não o mostrou ali: passaram onze anos para eles, mas para ela nem fez duas semanas desde que o estupor matou o seu Fausto por trás.
Reconheceu-o logo. Ainda careca e desprovido de qualquer barba; nariz torto e olhos pesados do tempo; boca gozona que congelou quando viu um fantasma a sair de Salvador. Tal como ele naquela noite, ela galgou a distância e encaixou-lhe um soco no estômago.
O Joel curvou-se para o chão e recebeu um pontapé na têmpora que o virou para cima. Os capangas reagiram à Vera, mas o líder no chão berrou-lhes ordens.
Permaneceu deitado a olhar para o céu e havia lágrimas nos seus olhos. Naquela altura, tanto podiam ser de dor como das memórias. E riu-se.
O grupo dele entreolhou-se confuso e um deles lá puxou o Joel. Olhou de relance para a Vera que o olhava de volta com lâminas nos olhos. E uma que tinha escondida. Desta vez, o Joel antecipou o golpe e agarrou-lhe pelo pulso que largou a faca. Puxou-a para si para se certificar de que não estava a imaginá-la. Ei-la tal como na última noite em que se viram, como na noite em que o outro a possuía. Depois deste tempo todo, a raiva vinha-lhe facilmente. Ela bufava, ele afastou-a.
“Monte de merda!” atirou-lhe.
“Sim, sim! Onde está o outro?”
“E ainda gozas?” gritou. “Mataste-o!”
“Oh, não. Não falo desse. O meu amigo Bernardo!”
O Carlos começou a avançar, mas o irmão ultrapassou-o.
“Oi” saudou.
“Como se estivesse a ver a puta de um fantasma!” Noutra altura, aquelas gargalhadas seriam prazenteiras, mas ali eram cutiladas. “Então é verdade! Outro mundo. Foste e vieste e eu que me foda.” Ninguém ria agora.
“Estou velho, Bernardo. Olha para mim. Aquela cabra da Mão pôs-me dentro, paguei a minha dívida e saí. Esperei que voltasses e nada!”
As palavras do Joel trovejavam. Os poucos de Salvador recuaram, menos o Carlos e a Vera que recuperou a faca.
“Mas não podia esperar para sempre, pois não? Não. Aconteceu algo engraçado, amigo. Quando estive preso e quando saí fiz outros amigos.”
E virou-se para trás, para os outros, e continuou: “amigos que o Império traiu, amigos que também morreram e perderam tudo, amigos com causa. Decidi que não ia voltar contigo enquanto não cumprisse a minha missão: acabar com o Império.”
E virou-se para trás, para os outros, e continuou: “amigos que o Império traiu, amigos que também morreram e perderam tudo, amigos com causa. Decidi que não ia voltar contigo enquanto não cumprisse a minha missão: acabar com o Império.”
Este gajo é louco!
O Carlos sentou-se na sua mesa com duas imperiais tiradas.
“Ei.” Acordou-o do transe.
“Ei...”
“Conta coisas, mano.”
“Nem sei por onde começar.”
“Já sei o início. Começa pelo meio” gracejou para o animar. “Então tu conheces aquele Joel.”
“Aham.”
“Aquela besta já anda a cheirar Salvador há tempos!” Comentou entre goles de cerveja.
"Não chamaram ninguém?" perguntou a medo.
“Oh, claro. Passaste por eles se vieste da porta...” Bebeu o fundo do copo de olhos encerrados como se estivesse a viver os últimos momentos daquela gente acabada às mãos do Joel e dos seus mercenários.
"Não chamaram ninguém?" perguntou a medo.
“Oh, claro. Passaste por eles se vieste da porta...” Bebeu o fundo do copo de olhos encerrados como se estivesse a viver os últimos momentos daquela gente acabada às mãos do Joel e dos seus mercenários.
“Tens ido à porta?”
“Yeap. Fechada!”
“Precisas de uma chave.” E agora bebeu ele cúmplice.
“E tu tens uma?”
O irmão acenou que sim e deu outro gole. As conversas paralelas davam um ambiente de estabilidade momentânea e tudo estava bem enquanto estava bem.
“Quando quiseres, vamos.”
O Carlos bateu com o copo na madeira lascada e riu a bandeiras despregadas para a confusão do irmão.
“Bernardo, mas voltar para onde? A minha vida está aqui, pá. Tenho trabalho, casa e mulher. O que tinha no outro lado? Um peido. Voltas tu se quiseres ou ficas por aqui que há muito para fazer.”
“Carlos, não estás a entender. Voltei de propósito para te vir buscar!”
“E o que queres que faça? Que pegue na trouxa e deixe tudo? Ou que pegue na São para voltarmos para casa da mãe?! Tenho 38 anos! Tu és maluco! Que ia fazer lá?”
“Podes fazer o que quiseres!”
“Pensa, foda-se. Se o que dizes é verdade e só passaram duas semanas lá... Então o Carlos que conheceste morreu.
“Carlos...”
Eventualmente deram-se conta do silêncio no café e dos olhos postos nos rapazes. Àquela hora já deviam saber que eram irmãos, mas que o Carlos seria o mais velho...
“Carlos...” repetiu mais baixo, ignorando a atenção.
O Carlos subiu da cadeira e levou os copos para o empregado. Pagou do bolso e não saiu sem a última palavra.
“Bernardo, desculpa. Vai tu. Hoje veio o Joel. Amanhã pode voltar o Império. E depois a Voz... Sei lá! Tenho de ficar. Tenho de pagar a esta boa gente...
E saiu. Pouco a pouco, as vozes regressaram ao café. O empregado serviu mais um copo ao Bernardo e disse que era da casa. Acto contínuo, o Bernardo inspirou a cerveja com sofreguidão e saiu apressado com uma mão no bolso.
Marchou pela noite, nas ruelas da aldeia. Não havia gente cá fora, ou estavam no café ou em casa. Sentia-se não secretamente vigiado, via-os a olharem-no pelas janelas iluminadas e nem se preocupavam em fechar as cortinas quando eram apanhados.
Quando chegou ao seu destino, esmurrou a porta meio embriagado, meio lúcido.
Uma cabeça ensonada espreitou para fora e o Bernardo perguntou:
“Correio?”
“Não estamos abertos” resmungou o rapaz.
“Disseram no café que tinhas uma mota.”
“Sim, e?”
“Preciso que vás entregar uma coisa.”
“Não estamos abertos, já disse.”
Foi então que sacou do anel azul do bolso.
“Preciso que vás ao Porto já. Preciso que vás entregar isto à Frederica Da Assunção.”
O rapaz de olhos esbugalhados abriu mais a porta. Olhos cravados no anel azul.
“Eu conheço-te. Vi-te a chegar com o Joel há tantos anos! Quando tu apareces, aquele gajo aparece!” Olhou para a rua receoso, mas o Bernardo abanou o anel diante dos seus olhos.
“Toma atenção: Vai ao Porto. Entrega isto à Frederica. Diz que o Bernardo está em Salvador e quer cobrar a ajuda!”
“Conheces a Voz?”
“Sim! Vai!”
“Porra, OK! OK! Merda, mas porquê agora?!” Fugiu para dentro, indicando ao estranho para entrar.
O Bernardo seguiu-o e fechou a porta atrás de si, Salvador da Pátria, vamos a isto.
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