Foge, Idiota
Algumas horas mais tarde, O Joel estava de volta. A madrugada espreitava, mas ainda faltava para serem horas decentes. Se bem que para ele, nunca seriam.
Desta vez veio sozinho e de braços abertos. Em paz. Queria ir a casa da mãe que era sua por direito. Dela, já ninguém sabia e poucos diziam que tinha ido viver com outra família. A casa continuava no mesmo sítio, vazia e à espera que alguém acendesse a luz e cortasse pão na mesa.
O Carlos espreitou pela porta e quis saber do resto do bando. O Joel tranquilizou-o, apontando para as árvores afastadas de Salvador. Estavam a vigiar as estradas por sinais do Império.
Mas o Carlos não gostou da resposta. Ninguém ali era burro e sabiam que o Joel e os seus mercenários estavam a isolar Salvador e a picar o Império. Quando decidirem olhar com atenção para a aldeia e investigar as mortes, as coisas não lhes iriam correr bem. E isto era um eufemismo.
O Carlos afastou o grupo para conferenciar e a decisão de o escoltar até casa foi unânime. Se isolassem a cabeça, o resto viria por arrasto. Até mesmo as políticas de alto nível se aplicavam à ralé.
E foi assim que a porta se abriu e deixou o antigo filho de Salvador passar. A aldeia trazia-lhe das melhores – piores recordações, desde os seus tempos de moço, passando pela doce Vera até ao seu regresso como morto em combate. Os caminhos ainda eram os mesmos, o café continuava no mesmo sítio, assim como o pelourinho, e as pessoas só estavam mais velhas. Havia nojo e confusão nos olhos das pessoas quando o viam a passar, mas o Carlos e os amigos atrás davam-lhes coragem para cuspirem bocas. Ele ignorava tudo.
E a sua casa lá estava, com a chave escondida no mesmo sítio. O Carlos pediu aos companheiros para ficarem para trás e entrou para a escuridão poeirenta com o Joel.
O Joel sentou-se na sua mesa e afagou a superfície gasta do tempo e do uso. Inspirou fundo, memórias, pó, e expirou ruidosamente ao ponto de incomodar o Carlos.
“Não é preciso estares a guardar. Não vou fazer nada.”
“Demoras?”
“Não. Vim só buscar umas coisas que me esqueci da outra vez.”
O Carlos não se sentou, ficou junto à janela, a observá-lo no feixe de luz que chegava pela rua.
“Aquele rapaz, o Bernardo. Está por aí?”
“Porquê?” Questiono. Os braços cruzados a ficarem tensos.
“Queria falar.”
“Posso passar o recado. Deve estar a dormir.”
“Certo” dispensou-o enquanto vasculhava uma arca.
“Eu e ele falámos. Ele contou-me o que fizeste há anos.”
“Foi?” Parou por instantes. “E mais?”
“Ele pensou mesmo em levar-te para casa. És um merdas.”
“Para a casa no outro mundo?” Continuou a puxar de coisas para fora, mas parou e avançou para uma cómoda. Virou-se para o Carlos: “E acreditas nessa patranha?”
“Quê?”
“De ele ter vindo de outro mundo, homem.”
“E se te disser que também vim de lá?”
“Então és tão louco como ele!”
“E tu cego. E velho.”
“Sim, e aqueles dois bem novos!”
“Já acabaste?”
“Não acho aquela merda. Ajuda-me.”
“Deves estar a brincar.”
“Queres que me despache ou não?”
O Carlos bufou ainda de braços cruzados, sempre fixo no homem e atento a qualquer movimento. Ele não estava armado e o outro também não, mas ali naquela cozinha valia qualquer coisa.
Nisto, sentiu movimento na rua. Passos apressados na direcção do café e bastou um segundo para desviar os olhos para a janela. O Joel empurrou a mesa contra o Carlos e prendeu-o contra a parede.
O Carlos que quase fazia dois do Joel tentava empurrar e desviar a mesa, mas o atacante forçava-a contra a cintura para o incapacitar. Uma e duas e outra vez, até que a raiva do Carlos lhe deu a adrenalina necessária para a puxar das mãos. Quis fazer o mesmo, mas o Joel desviou-se para a arca aberta.
Agachado numa posição quase felina, o mercenário preparou-se para receber o Carlos que o esbofeteou pela direita. O Joel cambaleou e amparou-se com os braços no chão, saltou para o adversário e abraçou-o, fazendo-o recuar. O Carlos desceu os punhos nas costas dele, mas não foi o suficiente para o largar. O Joel fechou uma mão em punho e começou-o a esmurrar nas costelas sem parar. E quando o Carlos o tentava arrancar com uma carraça, ele desviava-se para o outro lado ou para trás para retomar os golpes rápidos.
O Carlos tinha a força, mas o ex-soldado tinha a experiência e agilidade. Quando roubou o fôlego ao gigante, pontapeou-o nos joelhos até o mandar ao chão como um tronco velho.
Ainda esbracejou para lhe prender as pernas, mas quando o desequilibrou, o outro puxou-lhe pelos cabelos e desferiu-lhe socos na cabeça.
A sangrar do nariz e de golpes na testa, o Carlos ainda se esforçou para o repelir ou chamar ajuda, mas ninguém aparecia.
Mais correria na rua e uivos alucinados vindos da rua. A porta foi disparada da ombreira contra a parede e três figuras negras desabaram na cozinha. Começaram a rir quando viram o Joel de pé sobre o matulão. O mercenário parecia estafado, e longe de terminar ao que veio.
Deu umas palmadas nas costas do primeiro que entrou e foi-se sentar no chão. Os outros homens cercaram o Carlos e fizeram chover uma carga de porrada.
A última coisa que viu... ou julgou ver... foi o Bernardo aparecer à porta com um pau. Uma lança? Foge, idiota.
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