Nem era muito tarde para a pouca afluência da Corda ao Sapato, a estação de serviço à saída de Coimbra. Pelo menos outra coisa era igual ao seu mundo, os nomes parvos e os trocadilhos à Portugal.
“Amigos, o que vai ser?” Saudou o empregado ao ver os rapazes a passar pela porta.
“Boas, o que tem por aí?” O Joel foi o primeiro a cumprimentá-lo, O Bernardo só acenou. Outro casal estava sentado ao fundo da sala a conversar, mas interromperam por segundos para os ver a chegar; havia um velho sozinho a ler o periódico e outra família a comer de pratos bem servidos.
“Então, temos sandes de ovo, ovos mexidos, ovos cozidos, ovos escalfados, podemos estrelar uns ovos, omelete...” continuou.
“Pergunta-lhe se tem algo com ovos” troçou o Bernardo. “Arranja-me uma bifana e uma cerveja.” Apalpou os bolsos para sentir a memória distante de trocos perdidos. “Depois pago-te."
“Não me deixes esquecer, mas acho que ainda tenho uns mil escudos comigo.”
Avançou para o balcão que ainda enumerava todas as iguarias de ovo, agora nas sobremesas. Devia mudar o nome ao estaminé...
O Bernardo sentou-se numa mesa livre, à janela, que dava para ver a carrinha parada. Outros carros estavam à vista e as poucas árvores começavam a dançar com o vento que levantava.
Encontrou a televisão ligada para uma multidão, sem poder ouvir o que se passava. E não demorou até reconhecer a Praça do Comércio pelos seus detalhes bruscos e pelo D. José I a cavalgar por cima da turba.
“Chefe, meta mais alto!” pediu a voz do velhote.
Sem dar conta do amigo a sentar-se, o Bernardo já estava colado ao evento em Lisboa.
Olha-me só para as pessoas, estão loucas, Simião!
Bem o podes dizer, estão à espera há horas.
Ainda bem que está fresco ou teríamos outra revolta em mãos, Augusto.
As duas vozes sem dono riram-se um daqueles risos falsos e continuaram a comentar a afluência à praça. A câmara focou os dois palcos, com vista para o rio. Um com cadeiras viradas para o público e outro vazio.
Parece que estão a chegar, Augusto. A Ilustre e Venerável Família Real.
O nosso Amado Imperador, Sebastião II. A Cabeça erguida do Império.
Alguém fungou.
Fico sempre emocionado quando o vejo, Augusto.
É um orgulho ser seu contemporâneo. Não podia pedir melhor tempo para viver.
A sua esposa Raquel. Bela como a primeira manhã de um novo ano, como o nascimento de uma nova vida, tomou a mão do nosso Imperador para saudar todos os Pés e as Pernas que vieram assistir a este maravilhoso evento.
Os filhos, Simião: Francisco, Sebastião III, Anabela, Carlota. Todos magníficos e fontes de esperança para um Portugal próspero.
Sabes, Simião. Já tive a oportunidade e o privilégio de conversar com o Francisco.
A sério, Augusto? Tens de nos contar tudo!
Um dia destes, um dia destes, meu caro.
Olha, as Mãos. A General Taisa, a Porcelana Branca.
A estrangeira...
Então, Simião. Não sejas assim! Olha, o Vasco, A Pata de Coelho. Se está aqui, quer dizer que tudo vai correr bem!
Só as duas Mãos? Estávamos à espera de mais.
As outras Mãos estão longe a servir o Império, Simião. O Sol da Meia-Noite, A Queimada e O Lacrau.
Augusto, se tudo correr bem hoje. Será uma vitória decisiva para o Império e teremos as Mãos de volta...
E enquanto a câmara aérea pairava pela praça, focando as caras jubilantes dos lisboetas, um grupo de Braços subiu ao palco vazio. Vieram todos de branco, aos pares e caminhavam como crianças com frio, a tremer. Havia algo não natural na sua presença e com a cara coberta, a força do império comandava autoridade.
Então subiram aos pares, com os da dianteira a carregar uma caixa de madeira.
A câmara focou a caixa. Era uma arca de madeira polida, pesada pela forma como os Braços vinham a andar. Os outros seguiram-nos e dispuseram-se virados para o público que os saudou com urros e vivas.
Os Braços seguintes vinham a acompanhar um homem bonacheirão, uma mulher, dois homens adolescentes e uma menina. Estavam bem vestidos em contraste com os filmados na praça, mas vinham descuidados e por pentear e com um olhar duro e a tremer. A câmara afastou-se para apanhar a família a ser empurrada para a frente dos Braços, o público a berrar, a praguejar e a chamar de tudo e mais alguma coisa. Os dois comentadores gozavam e riam e incitavam aos espectadores a fazer o mesmo.
Nem quero acreditar que entrevistei aquele Umberto Da Assunção. Homem asqueroso. Horrível, Simião.
Meu querido, Augusto. Nem quero imaginar a dor horrível que sentiste, mas já vai passar, já vai passar.
Como ousa esse Umberto de ir contra o Império que tanto lhe deu?
Eleições? Escolhermos o nosso líder?
Simião e todos os que nos vêem, nós podemos escolher o que vestir e o que comer, não quem amamos. Não escolhemos amar o nosso querido Imperador, nascemos para o amar!
Um Braço abriu a caixa e revelou uma lâmina. Não muito curta, mas também não muito longa a ponto de ser um sabre. Passou a lâmina ao Braço próximo que a foi passando até cinco estarem munidos com as armas da arca.
O homem a quem chamaram de Umberto clamava ao público, mas não se percebia o que dizia porque as pessoas falavam mais alto e agitavam as bandeiras do Império nas cabeças dos outros. Saltavam e dançavam como num concerto.
Os Braços dispostos em fila forçaram a família a cair de joelhos, menos a criança que pôde ficar de pé - começou a chorar e um dos jovens deu-lhe a mão. A mãe implorava de braços esticados para a filha, mas um dos Braços forçou-a quieta.
Vai começar, Simião.
Nunca pensei que este momento chegasse, Augusto.
Pena que a filha mais velha tenha escapado.
Tivemos a Frederica nas mãos!, mas alguém ajudou-a a escapar. Se alguém em casa tiver informações acerca do seu paradeiro ou dos seus cúmplices, entre em contacto com as autoridades e será recompensado para lá dos seus sonhos.
Uma foto familiar surgiu no canto do ecrã.
Uma foto familiar surgiu no canto do ecrã.
“É ela! Joel, eu vi-a em Salvador!” exclamou o Bernardo para o amigo soldado que não arredava a atenção da emissão.
“São os pais dela? Joel, o que vai acontecer?”
“Deixa-me ouvir, pá!” respondeu ríspido e o outro calou-se. Todos na estação estavam colados em frente à televisão. O velho esfregava as mãos e sorria que nem um pervertido; o casal via calado sem expressão e o empregado, com as mãos no avental, tinha-se esquecido dos ovos.
Cinco Braços avançaram para trás da família Da Assunção. Uma mão puxou-lhes o cabelo e a cabeça para trás e olharam para a família real e para Sebastião II que acenou solenemente.
Foi rápido e misericordioso para os traidores do Império: a lâmina roçou o pescoço e um jacto de sangue espirrou para os ares da praça.
O silêncio ansioso durou segundos até registarem o que tinham acontecido, depois a multidão explodiu em aplausos.
Os Braços ainda tinham as cabeças nas mãos, os olhos revirar para a cabeça, o babete de sangue a espargir pelas roupas e um dos jovens com forças para levar as mãos ao golpe e a tentar estancar o sangue.
A menina foi erguida em bicos de pés, fazendo com que o sangue fluísse mais rápido. Tinha sido a primeira a ir e caiu no palco, com as perninhas a adejar. Ela que não tinha idade para pensar em políticas, golpes de estado ou reformas e que só queria brincar, estudar e talvez aprender a desenhar. Ela era a irmã mais nova da Frederica que estava algures e sozinha no mundo, a ver a família a apagar-se em directo.
O Joel agarrou na mão do Bernardo e puxou-o da mesa.
“Eu vi-a. Temos de voltar, Joel!” repetiu inconsciente de que o estavam a ouvir. Foi arrastado pelo estacionamento e contra o carro.
“Entra. Já!”
O Bernardo enfiou-se no carro em silêncio e aguardou que o outro desse a volta. Nisto, a realidade caiu e a bifana subiu-lhe à boca.
A porta do condutor bateu e ele deu à chave.
“Fodasse, Bernardo. Se alguém te ouviu, vão-te reportar. Se vierem atrás de ti, vêm atrás de mim.... E eu não posso morrer duas vezes...”
Sem comentários:
Enviar um comentário