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sábado, 12 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | DOZE

Vida de Estrada

Os rapazes deram à anca e sacudiram as mangueiras daquela mija demorada. Riam à parva porque tiveram a bela ideia de competir a distância, com o Bernardo a vencer (e porque tinha bebido muito mais da litrosa que trouxeram do café)

A vida de estrada corria bem por ali: o Joel vinha a cantar ao volante e puxava pelo companheiro. A música também lhe era familiar e apesar de não decorar letra alguma, sabia que era dos Diabo na Cruz e que já os tinha visto ao vivo. 
Estava a gostar daquele mundo. Até agora, a comida e a música eram iguais, mas havia diferenças gritantes: Primeiro, em horas de viagem só viram dois carros. Quando questionou o amigo, a resposta até fora simples: não havia necessidade. Não trabalhas, não te dão um carro. Quem quiser viajar, vai de comboio ou dirigível que são baratos e chegam a todo o lado.
E aquela informação só veio empilhar ao que não sabia daquele mundo. Mais os braços, as mãos e o pânico da Frederica sobre a política do mundo do Bernardo, mas as peças juntavam-se aos poucos. 
Aquela versão de Portugal vivia num império, mas não estavam no passado, até aí era óbvio. Até tinha medo de perguntar pelo ano, não fosse dar nas vistas que não era dali. Mais, Salvador não tinha o São no nome, mas as duas eram semelhantes em casas e pessoas. E uma não tinha aberrações de piscinas e casas de emigrantes.
Na casa da mãe não havia televisão. Havia um telefone, mas não viu ninguém com telemóveis. Nem no café. Por essa razão, manteve o seu escondido.
Iam para uma Lisboa com nobres e universidades e o Joel não se calava com isso porque falava como a sua mãe. Só não falou da sua guerra, onde combateu, contra quem combateu e porque mentiram sobre a sua morte, mas no mundo de Bernardo, este vira muitos filmes...

"Estamos a chegar a uma estação de serviço. Paramos?” O Bernardo apontou para um sinal.
“Por mim. Bebia um café que nem te conto” respondeu o outro. “Ainda caio aqui.”
O passageiro ajeitou-se no banco e roçou os pés nas armas no chão. 
Do nada, todas as preocupações regressaram como nuvens negras prenhas de chuva. Primeiro, uma gota de aviso, ele estava longe de casa; a segunda, tinha de ir a Lisboa; a terceira, encontrar o homem dos livros e mostrar o anel azul. Voltar para casa e para o irmão antes de apanhar uma molha.
Mas quando se virou para o condutor, não viu a chuva, mas uma daquelas pessoas na rua que sorri e ri e acena, mas que esconde uma tormenta por detrás dos olhos.
Quis aproximar-se, fazê-lo falar sobre o que sentia, mas não tinha boca e só queria gritar para acordar.

A estação de serviço surgiu na próxima curva e a carrinha virou para o parque quase vazio. Havia pessoas a sair, uma família de três. A criança saltava nas mãos dos pais como um balão preso e ria muito alto.
Os dois, o soldado e o rapaz do outro mundo, desceram da carrinha para a gravilha do parque e o Bernardo sentiu o chão a fugir-lhe debaixo da sola. O Joel puxou de uma espada e fixou-a ao cinto.
“Não pode entrar com isso!” sussurrou o Bernardo, a tentar não levantar a voz.
O Joel parecia confuso com o que o outro disse, mas não ligou. Apertou o cinto e liderou o caminho. 
A outra família cruzou-se com os rapazes e o Bernardo reparou na arma que o pai trazia atrás. Naquele mundo, aquilo era normal...
“Esperamos problemas?” Perguntou quando alcançou o Joel.
“Sempre” respondeu animado. Empurrou a porta da estação e entraram os dois.
Ao menos o café sabia ao mesmo.

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