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quinta-feira, 24 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E QUATRO

Cerúleo

Com a porta fechada, os três tinham separado as duas realidades.  
Os três: havia um Bernardo encostado à porta, a levar água ao sobrolho para limpar aquela sensação quente; uma Vera que sussurrava entre choros copiosos; e um Fausto deitado no escuro, ensopado de sangue e da água do chão. A sua resistência ao mundo dos vivos era denunciada pela pieira lenta e pesada.  




O Bernardo passou a contar os segundos entre inspirações, atento àqueles gatinhos no peito do estranho que em breve se calariam. Não demorou para que o túnel se enchesse de silêncio... 
Ponderou acender uma luz; ainda tinha o telemóvel no bolso (que bom para ele), mas hesitou. Se não houver luz, nada daquilo aconteceu. Um sonho febril. 
Deixou a mente voltar atrás, até ao momento em que o amigo lhe pediu para esperar. Não acendeu a luz nessa altura e esperou feito estúpido enquanto o amigo (amigo?) seguiu o casal e assassinou o rapaz. Meu deus, e esse rapaz morreu aos meus pés...  
Talvez se acender a luz agora, ainda esteja com o Joel no poço. Puta que pariu o Joel! E pontapeou a água, mas também alguma coisa. 
Por favor que não seja o corpo... 

E o choro voltou. Mas o choro nunca tinha desaparecido.  
A rapariga que ele conhecia como Vera estava à sua frente e sabia-o pela voz. Chorava, parava e falava com a pessoa que o Bernardo ajudou a carregar para dentro da porta. Falava de coisas banais, de música, de histórias, de Sintra e do casamento. E nunca com um tom triste porque estava a tentar convencê-lo a ficar, a viver só mais um bocadinho. Mentia para o salvar; para se salvar. 
O choro passou a um pranto perdido, abafado quando enfiava a cara na roupa do amado. 

Viu uma dessas mulheres pagas para carpir num funeral. Excepto, esta mulher não o estava a fazer por dinheiro. Ela pagaria tudo o que tivesse e não tivesse para o trazer de volta. 
Ele não faria o mesmo? Para a ver uma última vez. Vê-la... Arrastou a mão ao bolso e tirou o telemóvel, mas quando o ia ligar, algo aconteceu: por entre o pranto e as convulsões da rapariga, o Bernardo viu as paredes a alumiar de cerúleo e a dar dimensão e realidade ao túnel. As mãos deixaram de sentir a água no chão para apalpar pedra. E viu-os: ela embrulhada ao corpo. E teve frio. De repente, o ar tinha gelado ali. 
E só havia uma porta atrás. Onde devia estar a saída, estava um velho de cabelos muito brancos espalhados pelos ombros. 
Caminhou com uma agilidade de novo para junto do grupo e parou junto ao morto. Procurou-lhe a cara e estudou-lhe as últimas expressões. 
Estalou a língua e comentou: “Vocês fazem muito barulho.” 

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