Mantas
Só o Bernardo ouviu o velho.
A Vera continuou abraçada ao Fausto como se tivesse adormecido por cima do corpo – ou mesmo morrido. E o velho também não se repetiu.
Olhou para ela e depois para o Bernardo encostado à porta.
“Temos aqui um problema” começou. “Quebraram as regras quando trouxeram o morto para nenhures. Devia ter ficado no outro lado, assim ia para o sítio certo.”
“O que estás a dizer?”
“Algum respeito aos mais velhos, rapaz. Não basta terem-no trazido para cá, como não sabem falar?”
O Bernardo calou-se e mordeu uma fúria que nascia dentro de si. O sobrolho ainda lhe ardia, mas naqueles segundos a dor tornou-se passageira.
O velho agachou-se sobre o relevo do casal e disse algo que apenas competia à Vera ouvir. Depois regressou ao Bernardo ainda no chão.
“Então o que vamos fazer convosco?” indagou para o ar.
“Não sabemos de regras. Nem sabemos onde estamos” o Bernardo arriscou.
“Não” concordou. “E a culpa é de ninguém. As regras não estão escritas por aí, mas são mais condutas de senso comum. Não levariam um corpo para a casa de alguém, pois não?”
“O nome dele é Fausto” ouviu-se de uma Vera fraca.
“Oh, eu sei, eu sei.” Sossegou-a. “Peço desculpa. Já não estou habituado a lidar com pessoas. Vou ajudar-vos com este problema, mas depois temos de falar.”
Caminhou para o fundo da gruta, onde o Bernardo reparou em algo caído no chão. Seguiu o velho com os olhos que foi até a uma secretária de madeira; abriu uma gaveta e tirou um molho de chaves unidas por uma argola. Tal como nos filmes, imaginou.
“E tu precisas de te limpar, rapaz” disse, projectando a voz desde a secretária.
O velho regressou ao grupo, mas foi à rapariga que falou melífluo: “Anda. Vamos tratar dele.”
Passou a mão pelo ombro da Vera e agora falou para ninguém: “Há anos que não sentia tanta tristeza... E amor. E fúria. É... bom sentir. Rapaz, dá-me uma mão aqui.” Voltou-se e foi de novo à secretária. Para lá da secretária havia uma cama modesta e mobiliário parco.
“Puxa.” Apontou para a cama com a mão livre. As chaves chocalhavam na outra como sinos de domingo.
O Bernardo obedeceu e puxou do lençol da cama, enrolando-o nos braços.
Os dois regressaram para o morto e o velho voltou a dirigir-se à Vera com serenidade na voz.
“Deixas-me tratar dele?” Agachou-se com a elasticidade que ignorava idades e afagou os cabelos espalhados do Fausto. Fechou-lhe os olhos e espero que a Vera cedesse. Demorou até se afastar e sentou-se uns passos atrás a olhar para o velho com o noivo – este mesmo morto ali.
“Cobre-o.” E o Bernardo cobriu-o com o lençol. Entalou as pontas debaixo das pernas, braços, ombros e cabeça.
“Ele tocava muito bem” comentou com a Vera. As lágrimas haviam secado há muito, só se viam os carreiros secos e sujos da vista. Ela acenou.
O velho deixou-a e foi abrir a porta com as chaves na mão. Enfiou uma do molho no pequeno orifício e virou-a. A maçaneta cedeu, mas não abriu a porta: toda aquela dimensão fria de cristal azul cobriu-se de um manto fofo e branco. E arrefeceu ainda mais.
O Bernardo reconheceu as torres da televisão, só não sabia se estava na sua Serra da Estrela ou noutra qualquer. O dia já tinha terminado e por cima daquele branco imenso, estendia-se outro manto negro, apenas pintalgado por olhos celestiais; e a luz da lua em luto.
Reparou que o velho estava a conversar com a Vera que acenava sem usar a voz.
Deixou o chão e seguiu o velho para longe, “Vem” chamou o Bernardo que se juntou ao par.
A neve tomou força e o frio mordia-lhes a ponta dos dedos e do nariz. A Vera abraçou-se e o Bernardo encolheu-se com arrepios. O velho não sentia nada de nada, apenas testemunhava a neve a cair e a amontoar-se em redor do Fausto, o bardo. Soprou e soprou, caiu e caiu. Formou-se uma parede, uma campa nevada e uma rajada de vento teimosa sacudiu tudo de uma vez. E mais nada.
O Fausto tinha sumido, reclamado pelo vento dos mundos e ido para qualquer lado. No seu lugar ficou a neve manchada de sangue, mas até essa foi coberta por mais neve e novamente soprada para longe.
“As nossas pegadas nunca duram para sempre, não é?” Começou o velho. “Mas as memórias nunca o vento as levará.”
E retornaram ao túnel. A Vera caiu ao chão onde soluçou uns minutos e adormeceu.
O Bernardo voltou a reparar na lança.
“Anda, vamos falar” convidou o anfitrião do túnel.
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