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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | VINTE E CINCO

Mantas

Só o Bernardo ouviu o velho. 
A Vera continuou abraçada ao Fausto como se tivesse adormecido por cima do corpo – ou mesmo morrido. E o velho também não se repetiu. 
Olhou para ela e depois para o Bernardo encostado à porta. 



“Temos aqui um problema” começou. “Quebraram as regras quando trouxeram o morto para nenhures. Devia ter ficado no outro lado, assim ia para o sítio certo.” 
“O que estás a dizer?” 
“Algum respeito aos mais velhos, rapaz. Não basta terem-no trazido para cá, como não sabem falar?” 
O Bernardo calou-se e mordeu uma fúria que nascia dentro de si. O sobrolho ainda lhe ardia, mas naqueles segundos a dor tornou-se passageira. 

O velho agachou-se sobre o relevo do casal e disse algo que apenas competia à Vera ouvir. Depois regressou ao Bernardo ainda no chão. 
“Então o que vamos fazer convosco?” indagou para o ar. 
“Não sabemos de regras. Nem sabemos onde estamos” o Bernardo arriscou. 
“Não” concordou. “E a culpa é de ninguém. As regras não estão escritas por aí, mas são mais condutas de senso comum. Não levariam um corpo para a casa de alguém, pois não?” 
“O nome dele é Fausto” ouviu-se de uma Vera fraca. 
“Oh, eu sei, eu sei.” Sossegou-a. “Peço desculpa. Já não estou habituado a lidar com pessoas. Vou ajudar-vos com este problema, mas depois temos de falar.” 

Caminhou para o fundo da gruta, onde o Bernardo reparou em algo caído no chão. Seguiu o velho com os olhos que foi até a uma secretária de madeira; abriu uma gaveta e tirou um molho de chaves unidas por uma argola. Tal como nos filmes, imaginou. 
“E tu precisas de te limpar, rapaz” disse, projectando a voz desde a secretária. 
O velho regressou ao grupo, mas foi à rapariga que falou melífluo: “Anda. Vamos tratar dele.” 
Passou a mão pelo ombro da Vera e agora falou para ninguém: “Há anos que não sentia tanta tristeza... E amor. E fúria. É... bom sentir. Rapaz, dá-me uma mão aqui.” Voltou-se e foi de novo à secretária. Para lá da secretária havia uma cama modesta e mobiliário parco. 
“Puxa.” Apontou para a cama com a mão livre. As chaves chocalhavam na outra como sinos de domingo. 
O Bernardo obedeceu e puxou do lençol da cama, enrolando-o nos braços.

Os dois regressaram para o morto e o velho voltou a dirigir-se à Vera com serenidade na voz. 
“Deixas-me tratar dele?” Agachou-se com a elasticidade que ignorava idades e afagou os cabelos espalhados do Fausto. Fechou-lhe os olhos e espero que a Vera cedesse. Demorou até se afastar e sentou-se uns passos atrás a olhar para o velho com o noivo – este mesmo morto ali. 
“Cobre-o.” E o Bernardo cobriu-o com o lençol. Entalou as pontas debaixo das pernas, braços, ombros e cabeça. 
“Ele tocava muito bem” comentou com a Vera. As lágrimas haviam secado há muito, só se viam os carreiros secos e sujos da vista. Ela acenou. 
O velho deixou-a e foi abrir a porta com as chaves na mão. Enfiou uma do molho no pequeno orifício e virou-a. A maçaneta cedeu, mas não abriu a porta: toda aquela dimensão fria de cristal azul cobriu-se de um manto fofo e branco. E arrefeceu ainda mais. 

O Bernardo reconheceu as torres da televisão, só não sabia se estava na sua Serra da Estrela ou noutra qualquer. O dia já tinha terminado e por cima daquele branco imenso, estendia-se outro manto negro, apenas pintalgado por olhos celestiais; e a luz da lua em luto. 
Reparou que o velho estava a conversar com a Vera que acenava sem usar a voz. 
Deixou o chão e seguiu o velho para longe, “Vem” chamou o Bernardo que se juntou ao par. 
A neve tomou força e o frio mordia-lhes a ponta dos dedos e do nariz. A Vera abraçou-se e o Bernardo encolheu-se com arrepios. O velho não sentia nada de nada, apenas testemunhava a neve a cair e a amontoar-se em redor do Fausto, o bardo. Soprou e soprou, caiu e caiu. Formou-se uma parede, uma campa nevada e uma rajada de vento teimosa sacudiu tudo de uma vez. E mais nada. 
O Fausto tinha sumido, reclamado pelo vento dos mundos e ido para qualquer lado. No seu lugar ficou a neve manchada de sangue, mas até essa foi coberta por mais neve e novamente soprada para longe. 
“As nossas pegadas nunca duram para sempre, não é?” Começou o velho. “Mas as memórias nunca o vento as levará.” 
E retornaram ao túnel. A Vera caiu ao chão onde soluçou uns minutos e adormeceu. 
O Bernardo voltou a reparar na lança. 
“Anda, vamos falar” convidou o anfitrião do túnel. 

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