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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | TRINTA

Memórias Digitais

Quando a São lhe disse que o irmão tinha ido ter com o Joel, aquela serpente que andou a carregar, finalmente mordeu e não largou.



Agarrou na lança e correu para o portão escancarado, onde dois corpos jaziam encostados à parede improvisada, sentados como se tivessem apenas a dormir. Arrepiou caminho para o café e encontrou-o deserto e trancado. A casa do Joel!
Com mais urgência nas pernas, procurou orientar-se pela memórias de terem feito aquele caminho há anos. Chegou a uma porta aberta e ouviu o ruído da confusão, mais os gemidos abafados de alguém a apanhar. Galgou o passeio e deparou-se com o Joel sentado no chão e três filhos da puta a pontapear um Carlos ensanguentado, mas que ainda o viu a chegar. Os outros estavam todos contra a porta.
Sem se denunciar, o Bernardo ergueu a lança à cintura e forçou-o nas costas de um dos agressores que guinchou como um animal feriado. Curvou-se para trás para puxar a ponta, mas o Bernardo apressou-se e retirou-a com a mesma velocidade. O corpo do homem tombou para cima do irmão. Já sem o efeito de surpresa, Os outros dois encararam o chegado, mas o Bernardo já tinha estoqueado o ar em frente e o da frente não se conseguiu desviar totalmente. A ponta da lança entrou pelo estômago e o movimento lateral do homem fê-la rasgar a pele, saindo do corpo com partes das tripas. Este ainda as tentou empurrar para dentro, mas caiu de fronha no chão a chorar de agonia.
O terceiro homem e o Joel já estavam em cima do Bernardo que apenas varria o ar para os manter distantes.

Ainda com forças nos braços, o Carlos empurrou-se do chão e debaixo do corpo. O terceiro mercenário percebeu o movimento atrás, mas quando voltou a cabeça, a mão gigante do Carlos já a estava a empurrar contra a janela. Quebraram o vidro para a rua, arrancando estilhaços e rasgando a cara e os olhos. Sem equilibro, o mercenário afundou-se nas pernas e o Carlos aproveitou para forçar a cabeça do outro contra os gumes fixos. Serrou a carótida do mercenário que derramou para cima do vidro, do parapeito e da parede para o chão. Ficou pendurado à janela a dar à boca como um peixe tosco. O Joel nem tentou e contra dois, fugiu.
O Bernardo correu para amparar o irmão com os ombros. Sentou-o no chão e viu-lhe a cara borrada de sangue e inchada. A respiração custava-lhe e saía-lhe entupida.
“Apanha-o” pediu o irmão mais novo e afastou-o. Não sem antes de hesitar, o Bernardo obedeceu e correu atrás do Joel. Mas ele não conhecia as ruas de Salvador…

No porta principal, a São obrigava um grupo a barricar a porta. 
Os dois corpos já tinham sido afastados e cobertos, e a voz da mulher carregava aflição ao ver as luzes na estrada a aproximarem-se.
Havia três entradas para Salvador e um muro que não era alto o suficiente para impedir um adulto de o trepar, mas era para ali que as luzes caminhavam. E a São desconhecia que alguns já lá estavam dentro.
Reparou no Bernardo a correr e parou-o com um berro que distraiu os trabalhos na porta. Perguntou-lhe pelo Carlos e apertou-se ao peito quando soube o que tinha acontecido. E a voz de comando da mulher saiu disparada para ir ter com os seus. O Bernardo viu as pessoas contra a porta e a cara de confusão e de medo. A balança a pender para um lado e para o outro: ajudar ou procurar o outro e perder-se em Salvador. Deixou umas desculpas rápidas e decidiu-se pela última, a rosnar mais para se motivar do que para aterrorizar alguém.
Então, as pessoas ficaram sozinhas na porta. Alguns velhos, mulheres e o rapaz que estava com o pai da Vera a vigiar. Foi o dono do café que continuou os trabalhos, também ele avançado na idade e farto de merdas. Armado com um cabo de vassoura afiado, ladrou para o outro lado da barricada, mas foi recebido por gargalhadas.
Há meses que o Joel os chateava para entrar e viverem ali; há meses que os seus mercenários eram vistos como ratos, pragas para correr aquela gente das suas casas. Sim, as suas histórias tocavam nos cordelinhos da miséria: abandonados pelo Império depois de servirem em guerras inúteis. Dados como mortos quando quiseram retomar as suas vidas. Queriam respostas, queriam morder a mão que os alimentou e lhes bateu. Noutras páginas da história seriam vistos como heróis por fazerem frente ao Império, mas a diferença entre um herói e um vilão é a decisão tomada num segundo. E a decisão do líder dos mercenários atirou-o para a prisão há onze anos; e encheu a cabeça daquela gente com mentiras e fantasias.
Quando as luzes chegaram todas à porta, puseram-se a percorrer o muro nas duas direções. Caminhavam em silêncio, o que enervava mais as pessoas que as acompanhavam no outro lado. Poucos tinham armas em Salvador. A maioria tinha paus, facas e algumas armas que apanharam dos guardas mortos no caminho, mas quase ninguém tinha experiência de combate. O dono do café tinha visto combate há muitos anos, e era só. Ninguém foi à porta, o plano nunca seria esse, mas diluir a resistência e quebrá-la assim que possível. Dito isto, um dos mercenários foi ajudado pelos companheiros e saltou o muro, aterrando mesmo em frente a um ancião que berrou quando viu a avantesma. Tentou defender-se com uma faca, mas a paulada do outro foi mais rápida a deixá-lo no chão, com o pescoço numa posição que não era natural. Os outros lançaram-se ao inimigo, mas por todo o muro choviam mais e rapidamente foram cobertos por uma onda de violência.

O Bernardo corria e repetia ruas, casas e buracos, mas o Joel não dava ares de sua graça. O rapaz roçava o desespero e a adrenalina escoava pernas abaixo, deixando apenas aquela sensação de calor e humidade. Não tinha reparado antes, mas agora era evidente e bastante secundário. Arfava como se lhe tivessem roubado o direito de respirar, mas nem isso o demoveu de procurar pelo Joel e fazê-lo responder pelo Carlos.
Às tantas, esbarrou com duas sombras que gemeram e se prepararam para o atacar. Foi quando o pai da Vera reparou no Bernardo e prendeu a filha.
“Pensava que eras o Joel!” arfou a rapariga.
“Não… também ando à procura.”
“Ele fugiu para baixo.” A Vera apontou para o fim da rua, na direcção de uma das portas da aldeia. Os três não perderam mais tempo e correram para a porta que já estava aberta. O peso usado para a barricar estava espalhado pelo chão e os dois corpos continuavam no mesmo sítio. Para os dois lados da porta, não muito longe, vários grupos lutavam e berravam e tombavam, mas era claro quem estava em vantagem. É possível que tenham reparado no Bernardo, na Vera e no seu pai, mas quem podia ajudar estava mais preocupado em manter o corpo inteiro e a arrastar o amigo; e quem podia fazer pior sabia que para fora de Salvador se iam lixar. Mesmo assim, houve quem arriscasse na direcção da Vera com toda a confiança, mas a moça que passou tempo na estrada sabia se orientar com uma lâmina. Não deixou que o Bernardo a ajudasse e mandou-o atrás do Joel que já tinha passado da porta para se reunir com uma nova vaga de mercenários.
Ela e o pai ficaram para trás, e este bem tentou protegê-la, mas uma lambada do outro homem mandou o idoso ao chão e foi nesse instante que cravou a faca no braço dele. Puxou-a tão rápido como a voltou a espetar na bochecha. Cuspiu sangue quando tentou praguejar a Vera, mas só lhe saíram sons gagos e ensopados. Ainda tentou mais um ataque, mas o pai dela acertou-lhe com um barrote na nuca, atirando-o ao chão. Apanhou a arma dele e cambaleou para a porta, com a filha no seu encalce.

O Joel corria como uma besta de volta para a manada. 
Parece que naquela noite, todos tinham um plano. E o deles era de o matar; apagá-lo de Salvador como se nunca tivesse nascido e vivido ali, com medinho do Império. Vendidos! Como se atrevem a trai-lo?! Só queria ajudar. Só queria ajudar! E fugiu da sua própria casa, rua fora, directo à saída da aldeia. Parou quando ouviu a Vera a falar com o pai e aguardou na sombra por ela, se passasse por ali. Talvez tudo parasse se pudessem falar. O que ele daria por um segundo dela.
Deu um passo para fora da sombra e encarou a memória da que foi a sua noiva. Chamou-a:
“Vera?”
Mas a expressão da Vera quando reconheceu a voz era de um nada absoluto. Olharam-se e ele ainda arriscou um passo, mas travou congelado. Esperava todas as emoções, raiva principalmente, mas a Vera era toda ela indiferença. Tinha a faca na mão e agora foi ela a avançar.
O outro não conseguiu regurgitar mais nenhuma palavra, meteu a cauda entre as pernas e fugiu.

O Bernardo, a Vera e o pai sabiam que não o iam apanhar antes de se reunir com os outros mercenários. O velho desistiu quando o fôlego lhe morreu nos beiços, mas a Vera aguentou e ultrapassou até o Bernardo. Os dois gritavam pelo seu nome – até que o Joel parou. Virou-se para os dois fantasmas do seu passado de braços abertos para o receber. Atrás dele, as luzes aproximavam-se com o dia que estava a rebentar. Aquela manhã ia chegar a Salvador e descobrir a tragédia e mortes desnecessárias. Ia ser uma manhã fria, triste e o café não ia abrir para consolar as amarguras da noite.
“Parem!” Berrou na distância. “Não façam isto, por favor!”
“Depois do que fizeste ao meu irmão,” começou o Bernardo, com a lança apontada ao Joel. “só paro quando te rebentar todo.”
“O quê? Aquele tipo é o teu irmão?” Agarrou a cabeça pelos cabelos. “Oh que merda. Eu não fazia ideia! Se soubesse tinha acabado logo com ele ali.” Sorriu ao Bernardo.
O rapaz era fácil e caiu onde o Joel queria. Assim que começou a correr de lança em riste, sabia como o haveria de travar, desarmar e cravar-lhe a ponta na cabeça. A Vera deu por ele tarde, mas não o agarrou. E aconteceu tudo como o Joel previu.
A imprudência e a inexperiência do Bernardo fizeram dele um alvo tão fácil e em poucos segundos, a lança estava fora das suas mãos e ele estendido no chão, com um Joel mais velho e mais alucinado em cima dele, sentado no peito. Tinha a lança na horizontal e forçou-a para o pescoço do rapaz que ia perdendo forças e o ar. A Vera cravou a faca na omoplata do Joel que urrou de dor e raiva.
Com um braço livre, arrancou a faca de si e rasgou o ar, cortando a Vera que tropeçou.
Reparou que os mercenários ainda estavam longe, mas quando chegassem, os dois estariam perdidos. Tinham de acabar agora! Saiu do chão e preparou-se para saltar quando uma montanha desabou no Joel e esmagou-o no chão.

Graças ao pai da Vera que tinha ficado para trás, a São amparou o Carlos até ao irmão. E quando o mercenário louco estava por cima do irmão, conseguiu aproximar-se sem ser visto, mesmo quando este desferiu o golpe na Vera. Talvez o tivesse visto, mas a adrenalina ou uma bênção qualquer escondeu-o num canto cego e atirou-se para cima do Joel, caindo os dois no chão. Agarrou na sua cabeça e forçou-a contra a terra tanta vez que o homem já tinha cabelos soltos na mão. Só o soltou quando sentiu a pontada metálica no estômago. Rebolou de cima do Joel para reparar na faca cravada. E ficou ali a olhar para o cinzento a tornar-se num azul matinal.
Não imediatamente acima da sua cabeça, mas para quem vem do norte, reparou num dirigível a furar uma enorme nuvem que fugia do dia.
Fechou os olhos e quando os abria, o dirigível branco estava mais próximo. E assim sucessivamente até a enorme sombra ter devorado o chão à sua volta. 
A barriga daquela baleia abriu-se e várias figuras desceram sobre ele, sobre o irmão no chão e sobre a Vera que mantinha o Joel no chão com a lança.
Assim que os Braços aterraram lançaram-se a perseguir as luzes dos restantes mercenários que já dispersavam ao avistarem o dirigível da Porcelana Branca. Quando a Taisa tocou terra, ordenou a outros na direcção da aldeia e caminhou para a rapariga que tinha algo seu.

Quando tomou noção da chegada do Império, o Bernardo rastejou para o irmão e cobriu-o para o proteger, mas nenhum Braço ou Mão foram ter com eles.
Ali, naquele bocado de chão, apenas a São e o Bernardo ouviram a voz do Carlos e estas foram as suas palavras:
“Seu totó, que ias fazer com aquela coisa nas mãos?”
“Não te esforces, Carlos” pediu a São.
Ele riu-se e apertou a mão à volta da da mulher.
“Bernardo, tens o telemóvel?”
“Sim” respondeu. “Mas para quê agora?” Havia lágrimas a cobrir o seu rosto quando reparou na ferida do seu irmão mais novo. Ele era o mais velho, ele devia protegê-lo!
“Tens fotos de casa?” Inspirou. “E dela?” Expirou. Cada vez mais devagar, em câmara lenta, elevando o suspense se iria ser a última repetição.
O Bernardo enfiou a mão no bolso e sentiu-o vazio sem o anel, mas estava lá o telemóvel. Tirou-o com toda a urgência dos dois mundos e abriu as fotos. Mostrou-lhe a casa onde viveram com os pais, a mãe, todos – uma família perfeitamente normal e aborrecida. E todos sorriam para a foto. Sorriam por estarem vivos e não o perceberem. Os irmãos foram avançado pelas imagens e pelo tempo, até que o Carlos deixou de apontar e quedou-se a sorrir para cima, para o dia que tinha começado sem ele.
A São abraçou-o em silêncio. O Bernardo puxou o telemóvel para si para absorver todas aquelas imagens e emoções.

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