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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | TRINTA E UM

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Quando voltou a si e abriu os olhos, reparou que a Porcelana Branca estava perto, à espera.
“Lamento” ofereceu a General solene, dando os primeiros passos na direcção do Bernardo e da São – e do corpo do Carlos.



Visivelmente mais velha, mas não menos bela ao perto, na sua armadura pálida e lendária. Numa mão, empunhava agora a sua antiga lança, manchada de sangue, e que se erguia para o sol. Estendeu a outra mão ao rapaz deitado e revelou um anel azul.
Os olhos do Bernardo escancararam de surpresa e de choque, e quando tentou roubar a joia de volta, a mão da General reagiu mais rápido e fechou-se como uma ostra, a guardar a sua pérola.
“Parece que o correio foi desviado” troçou.
“O que nos vai acontecer?”
“Agora? Nada. O Império está bastante agradecido a Salvador. Sabes o que é ter daqueles cães pequenos a ladrar-te e que não se calam? Era ele.”
Por todo o lado, os poucos sobreviventes de Salvador que tinham caminhado até fora faziam o seu luto ao ver o Carlos deitado no chão; o dono do café afastou a São do corpo e alguns homens preparam-no para o trazer de volta. O Bernardo assistiu à cena com uma impassividade tal, que a própria Taisa perguntou se queria acompanhar a viagem. De certa forma, e por mais cruel que soasse, era a segunda pessoa que perdia em meses. O seu coração e todas as reacções ainda não tinham despertado daquela dormência, mas receava o futuro quando tudo desabasse com uma onda.
Continuou focado na mulher à sua frente, a ser racional:
“Ele queria acabar com o Império” remordeu.
“Sim. Não é o único.”
“E a Frederica?”
“Fica para a próxima, mas haveremos de lá chegar.” Voltou a abrir a mão, com o anel bem no meio da sua palma. “Vou ficar com isto. Não queremos que conspires com o inimigo.”
“Ela não é o inimigo...” respondeu entredentes.
“Talvez. Talvez não.” Sorriu-lhe e arrumou o anel dentro da armadura e tirou outro objecto que ocultou da vista do rapaz. Os Braços na área retornavam para a General como se esperassem novas ordens, mais ao longe, um pequeno monte de corpos ia sendo empilhado.
“O Joel?” Perguntou quando não o viu nem à Vera.
“Preso. Sabes que aquela moça pediu-me uns minutos com ele? Estava tão perto de deixar, mas li-lhe nos olhos que não iam falar. Por mim, era para o lado que dormia melhor. Ela acabava com ele e eu não tinha este trabalho. Não, mas querem usá-lo como exemplo e já estão a preparar o palco para  o executar.”
O Bernardo engoliu em seco.
“Ela voltou para Salvador com o pai. Devias voltar também.”
Para terminar, ela reparou no telemóvel nas mãos dele e mostrou-lhe o que tinha escondido: um telemóvel concha, daqueles antigos e sem toque.”
Ele não se mostrou impressionado.
“Afinal sempre existem aqui...”
“Não. Este veio do nosso lado.”
Mas a sua cara de surpresa traiu-o de novo.
“É verdade.” A Taisa voltou a sorrir, mas um sorriso pesado. “Faz… faz perto de trinta anos" hesitou.
Um longo suspiro penoso moveu o rapaz ainda no chão.
“Como o tens mantido carregado?”
“Electricidade, como assim?” Soltou uma gargalhada. “Diz-me, como estão as coisas no outro lado?”
“General” começou.
“Ana. Chama-me pelo meu nome verdadeiro.”
“General Ana.” Ela revirou os olhos. “Não sei se consigo explicar bem, mas… quando voltei ao nosso mundo, estive fora dez ou onze dias, mas quando voltei para Salvador, tinham passado onze anos. Se isto fizer sentido e está aqui há trinta e tal anos, só passou um mês. Ainda pode voltar.”
A Porcelana Branca recuou quase como embriagada pela revelação e as feições encheram-se de alegria, dor e de idade. Passou as mãos pelas faces e trancou os lábios. O reflexo e a ilusão sumiram dos olhos e voltou-se séria:
“Não.”
“Porquê?!
“Ouve rapaz. E olha para mim. Vim para cá mais nova do que tu. E sabes como? Quando fugi da recruta. Quando achei que conseguia fazer tudo e depois… achei a porta. Voltei à caserna e decidi fugir nessa noite, fiz a mala e passei para cá. E a ironia das ironias, olha onde vim parar! Ao exército.” Estendeu os braços, para os seus Braços que aguardavam ordens; para o seu dirigível. “Aliás, as lendas só existem onde forem contadas. No outro lado só seria uma estatística no desemprego.”
Ela era igual ao seu irmão. Ambos com vidas e existências enraizadas naquele outro mundo – diz-se que uma casa é onde o coração está e aqueles dois tinham mudado o seu para cá. O Bernardo olhou-a e viu o Carlos sentado no café a dizer o mesmo. Talvez ele é que esteja errado…
“Vamos, homem. Está na hora de acompanharmos os mortos.” Estendeu-lhe a mão e o Bernardo lá a aceitou.

Ele caminhou sozinho até Salvador. 
A General lá ordenou aos seus Braços para queimarem a pilha de mercenários e aguardarem fora da aldeia até regressar. Depois seguiu o Bernardo.
Na zona central, nos degraus do Pelourinho, um grupo de crianças viu o par a chegar. Aquele cenário era-lhe estranhamente familiar; mudam-se os tempos, mudam-se as caras. Era possível que em onze anos, essas crianças tenham crescido para os jovens que protegeram Salvador e caído nessa noite. Também era possível que estas crianças não estejam cá amanhã.
O café estava aberto e os poucos que lá estavam bebiam em silêncio – era raríssimo não haver conversa, mas o ar daquela manhã pedia outra coisa e a tensão da chegada da Porcelana Branca não ajudou. Ela sentou-se ao balcão e pediu um jarro. O Bernardo foi à procura do irmão.

Nesse mesmo dia, os mortos foram enterrados e alguns cremados, como o irmão. E antes de fecharem as cinzas, roubou umas para si e misturou-as com as da mãe, para dentro da caixinha que o tinha acompanhado naquela aventura.
Passou algum tempo no silêncio da São e absorveu o espaço onde o irmão tinha vivido e envelhecido com esta mulher. Ela era bastante forte e não demorou até sorrir, começando a partilhar histórias. Saiu pouco depois, mas ia nas escadas quando escutou um soluçar de casa. Saiu para a rua e deixou aquela casa para trás.
Depois encontrou a Vera quando estava a regressar ao café e falaram brevemente até se darem conta de que nunca foram apresentados como deve ser. Mas tudo o que aconteceu para trás deixou-os tão unidos que já não precisavam de conversa de circunstância. Sozinhos na miséria, riu toscamente.
Deixou-a no café, onde estava o pai. E a General – a Ana, afinal. Era quase de noite, mas o tempo tinha voado como tanto para fazer ou beber. Ainda assim, ela recebeu-o com toda a seriedade, empurrando qualquer sinal de embriaguez para baixo.
“Venha comigo” pediu o Bernardo.
“Onde?”
“Vou-me embora, mas antes disso quero mostrar-lhe uma coisa.”
Ela não perguntou mais nada por hábito e seguiu o rapaz para fora do café e pela rua, para fora de Salvador. E em direcção à cerejeira que escondia a porta.
Agora ele sabia das chaves e do que fazer – e como fazer. Tirou das cinzas da mãe e do irmão e espalhou-as no ar, borrando a existência da porta. Sentiu-a até à maçaneta que virou sem resistência. Ali estava a escuridão do túnel e a outra porta para a sua São Salvador.
“Ligue o telemóvel.”
“Vá lá, ligue. Vou deixar a porta aberta.”
E abriu a porta e deixou-a sozinha com o que tinha de fazer. Desceu o montinho e sentou-se de costas para a porta, dando-lhe privacidade.
A Taisa ligou o telemóvel que tinha pouca carga e assim que obteve sinal, foi entupida de mensagens: muitas a desejarem que voltasse a casa. Anos aqui, um mês ali e ainda assim, imensas pessoas à espera dela. Ligou para o número que se repetia mais pelas mensagens e assim que ouviu o toque de chamada, deixou-se cair no chão – de gatas, depois de costas contra a cerejeira. Atendeu-lhe uma voz aflita, uma voz de mulher gasta que agradeceu aos céus e a todos os santos e a bombardeou de perguntas. Se o tempo fluísse normalmente, a sua mãe não estaria viva, mas ali estava ela apenas com dias em cima até entender que a sua ausência tirara-lhe meses… anos de espírito. Conseguiu tranquilizar a mãe, mas mentiu, mentiu ao contar-lhe que estava numa missão secreta do exército e não podia falar muito. Mentiu. A mãe acreditou. Ou mentiu também. Iria ligar em breve, prometeu. E desligou entre lágrimas que não se decidiam pela tristeza ou pela felicidade. Desta vez, quando olhou para cima, foi ela a reparar no Bernardo que lhe sorria. Ele estendeu-lhe a mão e ela sacudiu-a grata. O rapaz entrou pela porta e desapareceu.

*

A casa de São Salvador estava praticamente na mesma, mas com mais pó e cheiro a mofo. O retornado abriu as janelas e sentou-se à mesa, a olhar para o portátil do irmão, suspenso há quase um mês. Puxou-o para si e acordou-o para ver o ecrã de entrada a pedir a palavra-passe. Não a sabia. Fechou o portátil, arrumou-o na mala e guardou o resto das roupas do irmão. Fez-lhe a cama e voltou para a mesa da sala. Não havia nada para comer; nada para fazer.
Foi ao café comer uma bifana e empurrou-a com uma imperial. Passou pelo mercado e trouxe o essencial para casa. E repetiu esta rotina por um mês. Faltou ao trabalho, a compromissos e quando lhe perguntavam pelo Carlos, dizia que estava bem, estavam os dois em São Salvador. Morreu noutro mundo e não tenho lata para voltar a Lisboa. Tomou uma decisão. A decisão.
Arrumou a casa toda, as roupas, o portátil do Carlos, os seus livros, tudo. Cobriu o carro e trouxe-o a custo para um sítio que não estorvasse. Pegou nas malas e arrastou-se até ao terreno dos avós.
O silêncio era absoluto. Não havia ninguém ao frio e as piscinas estavam cobertas até à próxima estação quente, inspirou aquele ar frio da Beira e começou a mandar terra pelo ar, até vislumbrar partes da porta.
Usou a sua última chave e deixou para trás a sua vida e tudo o que o prendia ali. A porta abriu-se e passou para a outra Salvador anos mais velha.

*

Encontrou-se com uma Vera velha, feliz e com filhos e netos, que lhe deu guarida até ter a sua casa. Soube que muito tinha mudado por ali e, ao mesmo tempo, nada. A São era a nova dona do café e não voltou a casar por opção; o Joel fora executado na televisão, mas a sua morte só incendiou mais a revolta. Com isso, a Voz ganhou mais força e empurrou o Império do Norte. De momento, o país ainda estava dividido, com uma Frederica viva a atrair mais apoiantes… e mais inimigos.
A Porcelana Branca caiu num dos combates do Norte e gravou o seu nome na História do Império. A sua armadura encontra-se exposta no Coração do Império, assim como as memórias das outras Mãos que viveram e morreram nos anos.
E quando o Bernardo percorreu o resto do seu caminho até ao limite das forças da velhice, achou que estava na hora de cumprir a sua promessa ao Porteiro. Voltou a fazer a mala, agora mais leve e com o mais importante e regressou ao monte da cerejeira que ainda vivia, a maldita.
E porque vinha saldar a dívida, a porta abriu-se-lhe sem chave e entrou para o túnel azul, onde encontrou o velho que ainda era velho, mas não tão velho como ele.

E a partir desse dia, o Bernardo passou a ser o novo porteiro entre mundos. De tempos a tempos, abria a mala que trouxe e passava os olhos pelas fotos que tinha vindo a guardar. Havia da sua família, com a mãe e o Carlos; havia algumas da Vera e do seu rebanho de pessoas; da São no café e até da nova família do Bernardo. Também ele enraizou em Salvador, arranjou companhia e trabalho e fez-se feliz até onde deu.
E quando não olhava para as fotos, guardava todos os mundos ao seu alcance e todas as vidas daquelas pessoas. E esperava…

Até à chegada do próximo...

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