Onze Anos
Dois pares de olhos espreitavam dos muros de Salvador.
Um jovem e um velho; os dois a olhar para lá da aldeia e para as suas estradas. Outros pares também guardavam as entradas para a aldeia.
O fim da manhã não trouxera o calor às pessoas, que apareciam à rua com capas e agasalho pesado; e as chuvas fortes obrigavam ao uso das botas de lama. Se bem que não viam chuva há dias e que falta fazia agora para apagar aqueles fogos e limpar o ar.
O jovem estava de pé, a tentar assobiar, enquanto o velho enfiava os dedos num maço rasgado para resgatar o último cigarro. Encostado à sua vara, não era assim que pensava passar os anos da velhice. Enfiou o cigarro entre os lábios e atirou o pacote muro abaixo. O companheiro estalou a língua de desaprovação. Acendeu uma chama com um isqueiro de plástico e chupou o calor do tabaco. Passou ao outro que o imitou.
Não havia conversa, apenas o passar do cigarro e o fumo empurrado pelo ar. Humanos a serem mecânicos.
Chegaram ao cu do cigarro; sem mais nada para aproveitar, atiraram-no pelo muro, para um montinho de beatas e maços. Em breve, o café iria deixar de ter mais e a guarda iria passar a ser mais aborrecida. Teriam de conversar.
“Está a ver aquilo, senhor Miguel?” chamou o mais novo.
“O quê?” O velho semicerrou os olhos na direcção que o outro apontou.
“Parecem duas pessoas ali.” Estava a apontar para uma coluna de fumo.
“Se não andas a ver coisas, rapaz...” Esticou-se para tentar ver, mas a porra do fumo passava à frente. Ou estava a ver bem e o outro estava a imaginar pessoas.
Mas, tal como o outro disse, dois vultos caminhavam pela estrada quando uma rajada de vento empurrou o fumo para longe.
“Ó diacho, cala-te que agora os vejo eu.”
“Senhor Miguel, já são eles?”
“Sei lá eu! Diz-me se vês armas.”
“Vejo.”
“Porra."
“Mas eles só vêm de tarde” desabafou o rapaz nervoso. E cinco dedos de velho cravaram-se-lhe na pele, ignorando a idade por segundos e fazendo o rapaz encolher de dor. Descobriu a cara do seu assaltante e reparou no esgar do velho, nos olhos a tremer e nas agulhas de lágrimas que lhe cravavam as bochechas.
“Senhor Miguel?”
“É... é a minha pequena!” Apoiado na vara, tremeu a descer de onde estava para ir à porta. Dois matulões estavam sentados a comer uma maçã quando viram o velho apressado.
“Miguel, onde vai a correr?”
“Eles vêm aí?” Ergueu-se um deles, ainda com a maçã na mão.
“A minha Vera! Abram, a minha Vera vem aí!”
Os dois trocaram olhares, mas o companheiro mais novo do velho desceu também e confirmou as duas pessoas.
“Uma delas é a Vera! Ainda me lembro dela antes de ter ido embora.” Sorriu para o velho e deu-lhe o braço enquanto os outros destrancavam a porta improvisada.
A porta de Salvador abriu-se para os visitantes: uma Vera que vinha desconfiada daquela muralha e do silêncio sepulcral da sua aldeia e um Bernardo com a estranha sensação de que algo ia acontecer ou tinha acontecido, mas os dois não podiam fazer mais nada se não caminhar em frente e não tropeçar.
Quando as primeiras cabeças espreitaram pela porta, o velho foi o primeiro a correr para fora, na direcção da Vera. Não foi imediato, mas a rapariga demorou a reconhecer o pai velho, muito mais velho do que estava quando partiu em viagem. Recebeu-o nos braços e sentiu-o naquele abraço. Igual ao último que deram quando deixou Salvador há meses.
Os olhos saltaram da reunião familiar para o Bernardo que permaneceu atrás, com a lança entre as duas mãos. Os três jovens saíram na sua direcção, mas um vinha a rir com cara de parvo. E a primeira coisa que fez quando se aproximou do Bernardo foi tentar dar-lhe uma palmada nas costas, mas o rapaz recuou e ergueu a lança contra o peito largo. O outro continuava a rir, com os amigos tensos na retaguarda.
“Não há problema, gente! Na boa!” Soltou uma gargalhada cheia e aliviada e virou-se para os amigos de Salvador. “Senhor Miguel, Ricardo, Jorge, este é o meu irmão Bernardo.”
Uma onda de confusão varreu a cabeça do Bernardo quando aquela figura enorme o chamou de irmão. Ali mesmo, nesta Salvador. Várias mãos esticaram-se para o Bernardo que as estava a apertar sem dar por isso, com aquele rapaz à sua frente. De repente, o seu Carlos estava mais constituído, barbudo e cabeludo.
E se o Bernardo vestia a mesma roupa desde aquele último pequeno-almoço na praça, o seu irmão vestia um macacão, com uma camisola de lã suja e um casaco aberto por cima. A barba e o cabelo ásperos carregavam uma idade que não se lembrava de ver no irmão.
“Carlos?”
“Não me gastes o nome!” Tomou o irmão mais velho nos braços e apertou-o pelo tempo perdido. “Onze anos, foda-se.”
Soltou-o e procurou-o nos olhos.
“Onde te meteste? Não, anda. Não podemos ficar na rua.”
Por momentos, a guarda de Salvador esqueceu a ansiedade dos que vinham aí e entraram para comemorar o reencontro entre pai e filha e dos dois irmãos que não se viam há onze anos. Quando a última vez que se viram nem foi há duas semanas.
Um enorme braço de anaconda rodeou o Bernardo e puxou-o contra o Carlos.
“Tens de vir à minha casa. Há quanto tempo não comes?”
“Estou bem. Já comi. Carlos, o que raio se passa aqui?”
“O quê?” perguntou a caminhar para o café.
“Que onze anos? Que aconteceu?””
O irmão parou e voltou-se para o Bernardo.
“Entrei na porta à tua procura e já não consegui voltar. O pessoal de Salvador ajudou-me, deu-me casa e comida. Arranjei trabalho e fiquei por aqui. Mas a questão é: onde te meteste? Disseram-me que passaste por aqui com aquele filho da puta e depois foram para Lisboa. Isto há onze anos!”
“Foi há duas semanas!” Gritou. Fomos a Sintra, fui tentar voltar para casa. E foi quando conheci a Vera. E foi quando...”
“Sim, sabemos o resto.”
“O que aconteceu?”
“Queres a resposta curta ou longa?”
“Tudo.”
“Bem, o Joel foi preso pela Mão.” E o Bernardo olhou para a lança dela nas suas mãos. “E depois fugiu.”
Sentiu a tensão na voz do irmão e a confirmação da sua inquietação.
“Fugiu para onde?”
“Oh, ele anda por aí. Ele e o seu grupo de palhaços.”
“O que queres dizer?”
“O teu amigo Joel divertiu-se nestes anos a reunir trastes como ele. Montes de merda que se divertem a pilhar aldeias para encher a barriga.”
“E o Império? Os Braços?”
O Carlos cuspiu no chão e cruzou os braços grossos.
“Esses estão ocupados com a nova Voz.”
“Quem é a voz?”
“A última Assunção, ora! A Frederica.”
A boca do irmão caiu-lhe quase ao chão, mas não a apanhou.
“O que queres dizer, o que está a acontecer?”
“Guerra, mano. O país está em guerra e ninguém quer saber de nós. A última vez que tivemos notícias da Voz, foi quando os dirigíveis do tio voaram para o Porto.”
“Isto é demasiado, Carlos. Esperas que acredite que em duas semanas o país começou à guerra, o Joel anda a recrutar quê, mercenários? E para atacar Salvador? E tu... e tu estás aqui...”
“Sim, estou aqui.” Aproximou-se do irmão mais velho. Um completo paradoxo porque o mais novo é que tinha a aparência de velho. “Tens de acreditar no que te digo, Bernardo.”
“Foda-se...” Aterrou no chão, mesmo no meio do caminho. A lança pesada caiu aos pés do Carlos que a pegou para a admirar. Nisto, uma moça anafada correu para os irmãos e puxou do Carlos. Tinha o cabelo enfiado num gorro e um sorriso que irradiava simpatia. Beijou o irmão nos lábios e virou-se para o que estava no chão.
“É o teu cunhado, São.” Voltou a rir quando a mulher o cumprimentou. E ele ali sentado no chão.
“Chegaram, chegaram!” Chegou o berro de uma das portas. “Chegaram!”
“Merda! Rapaz, levanta-te daí e vai para o café” ordenou a São.
O Bernardo olhou para o Carlos e saiu da figura de onde estava. Ou ia esconder-se no café ou ia com eles enfrentar outro passado.
A Vera passou com o pai no braço e soube o que tinha de fazer: seguiu o irmão até à voz que berrava os chegaram, mas ficou atrás da muralha de gente. Só ouviu a voz do Joel no outro lado.
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