O homem bateu ao de leve na ponta do cigarro.
A cinza solta caiu no chão, num montinho, e devolveu-o à boca, sugando o calor. Um pirilampo rúbeo surgiu na berma da estrada e desapareceu. O homem expulsou o fumo para cima.
“Aquilo foi de loucos, viram?” Perguntou ao Joel que esfregava o tronco para se manter quente.
O Bernardo e a namorada do homem ficaram no carro a conversar enquanto os outros dois tinham voltado para o motor do carro avariado. O casal Ana e Mário tinham saído da estação uns cinco minutos depois. A emissão tinha sido cortada quando começaram a remover os corpos, o velho continuava a rir e o empregado tinha voltado para os seus ovos. Não estavam ali a fazer nada: pagaram e piraram-se. Que sorte terem seguido a mesma estrada para os encontrar ao ali... e ao frio...
"Vi muita merda na fronteira, mas nada assim tão... falta-me a palavra!” Tirou o cigarro dos lábios. “Gratuito! Entendes?”
“Serviste?” Questionou o Bernardo.
“Afirmativo. Elvas. Tu?”
“Chaves.”
“Outro homem das bordas. Manter os espanhóis fora, não é?”
“Afirmativo!” Os dois soldados riram e quando riam, afugentavam o frio. “É, mas parece que nós também ficámos de fora. Não é que cheguei a casa e tinham dito que...”
“Tinhas morrido?” completou o Mário. A cara de espanto denunciou-os.
“Tu também?”
“Eu também, amigo. Os meus pais pareciam que estavam a ver uma assombração a passar pela porta!” Deixou escapar uma gargalhada sonora.
“A minha mãe quase que me desancou à porrada. A minha noiva sumiu para Lisboa. Foi uma alegria. Na verdade, eu e o Bernardo estávamos a ir ter com ela!”
“Nisso tive sorte, a minha ainda estava por casa. Quando me viu ia morrendo ela.”
“Mas porquê?”
“Fácil.” Atirou o cigarro ao chão e pisou-o. “Dinheiro e patriotismo. Mais mortes igual a menos salários. Mais mortes igual a mais ódio pelo inimigo.”
Mas o outro não respondeu. Olhou para o chão e esburacou-o com a ponta da bota.
“É por isso que nos andam a matar.” E o Joel saltou quando ouviu isto. “É verdade. Fomos atacados pelos Braços. A minha unidade teve sorte porque estava na frente e eles vieram por trás. Tivemos todos os avisos.”
“Espera!, Foi a Voz que nos traiu e atacou. A Voz está morta!” Bradou o Joel.
“Pode ter sido. Pode não ter sido. Os mortos não contam histórias e não sabemos a Mão que os liderava.”
“Agora vais dizer que uma das Mãos joga para o outro lado.”
“Ouve, amigo. Não estou a dizer nada, mas quando cheira a fumo há fogo. Camaradas mortos, mais Braços no terreno, o que vimos na televisão e a recompensa pela Frederica.” Tirou o maço amolgado do bolso e puxou de outro cigarro com os lábios. Raspou um fósforo e aproximou-se da pequena chama confortável.
“Parece que voltámos à idade média. E o teu amigo parece que sabe alguma coisa.” Sacudiu o fósforo até à escuridão e deixou-o no chão.
Havia aqui um dilema: as espadas estavam no chão do carro, mas tinha a navalha no bolso traseiro das calças. E tinha um braço chocho.
“Não fui eu que ouvi. Foi a minha Ana. Algo sobre saber da Frederica.” E o tipo parecia nem dar conta dos movimentos demorados do Joel. Falava com uma casualidade como se não dissesse nada de mal.
“Não” corrigiu o Joel. “Não acho que tenha dito isso. Foi do choque de ver a miúda a morrer.” Os dedos a penetrarem lentamente na boca do bolso.
“Foi horrível, eu sei, mas ela tem quase a certeza do que ouviu. A moça tem ouvidos de tísica.” A ponta dos dedos a sentirem o frio do cabo. “Ouve, eu sei: é teu amigo, mas imagina a pipa de massa que íamos ganhar.”
Chupou o cigarro com excitação e engoliu o fumo ao sorrir.
“Podíamos ajudar muitos camaradas iguais a nós!”
E a ideia até que era interessante... Uma que já lhe tinha passado pelos olhos, mas não desta forma.
E agora falou ele, “Deixa ver se entendi: achas que o Império nos traiu, mas queres receber dinheiro desse mesmo Império?”
“Um homem tem de comer. E uma mulher! Ela come bastante.” Cuspiu uma bola de saliva para o chão e a cinza soltou-se para as calças.
“Não, assim não. Obrigado pela ajuda, continuamos a pé.” Preparou-se para regressar quando ouviu o outro a esmagar a beata.
“Não sejas assim! Pensa bem. Pensa na tua mãe!”
O Bernardo sentiu os dedos gelados do camarada, do soldado morto, do Mário no ombro e foi como se o gelo se propagasse no seu ser. Puxou a mão para fora e fez a lâmina disparar do cabo para o ar da noite, para o pescoço do outro homem. Resistiu a entrar, mas foi até ao fundo e tirou-a.
O sangue espirrou num arco e jorrou pelo pescoço, por dentro e por fora da roupa. O homem estava a tentar falar, mas os sons que lhe saíam eram grunhidos misturados com bocados de palavras soltas. Abria e fechava a boca como um peixe a engolir ar.
Cambaleou e tropeçou quando tentou apanhar o Joel. Primeiro de joelhos e depois de cara ao chão com um crac de algo que não devia estalar. Uma poça negra alastrou-se do pescoço e o homem que terminou o Mário, deu um salto tosco para longe e acelerou para os carros.
A Ana cotovelou o Bernardo para acordar, mas algo estava errado quando só viu o Joel a regressar. Não saiu do carro, mas repetiu os seus pensamentos ao Bernardo que reparou na expressão do outro.
“Tudo bem?” Mandou-lhe.
Mas o Joel ignorou e foi directo à carrinha buscar a mochila e o rolo de espadas. Galgou a distância até ao carro onde estavam e atirou com tudo para o banco de trás. E com a expressão dura, lábios chupados e olhar vazio, rodeou o carro até ela. Puxou a porta e pediu-lhe para sair.
Ninguém lá dentro entendia o que se passava, apenas olharam para a cabeça careca, mal iluminada pelo carro e pela lua. Pediu-lhe de novo para sair, mas com mais autoridade e quando ela perguntou pelo namorado, o Joel puxou-a pelo ombro e atirou-a ao chão.
Entrou no carro e quando viu as chaves na ignição, ligou o carro e acelerou para a estrada, deixando a mulher a berrar no retrovisor.
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