Não havia vivalma na estrada e a única carrinha cortava a noite.
O condutor seguia tenso e colado ao volante, enquanto o outro vinha a sintonizar a rádio. Procurava alguma emissão sobre a execução de há horas, alguma coisa que fizesse sentido ou só música.
O Joel não tinha dito mais nada desde a estação e o Bernardo não puxou o fio. E ainda há horas achava que este mundo era porreiro, mas, bem, o porreiro tinha levado um chuto no cu quando a televisão exibiu a execução de uma família. E o povo a celebrar.
Já no seu, as pessoas também adoravam uma boa execução em praças. Havia coisas que não mudavam.
“Se calhar não ouviram nada” falou o condutor pela primeira vez em quilómetros.
“Achas?” O outro estava um nada preocupado por osmose.
“Acho. Acho. Tu viste-os colados à televisão, Bernardo.”
Aham, acenou sem resposta. Não tinha a certeza. Às tantas, o velho ouviu-lhe os guinchos histéricos; ou o casal; ou o empregado. Qualquer um deles iria botar as mãos à recompensada.
É ela, é ela. Conheço-a! Mas que raio, meu! Estúpido, estúpido.
“Estúpido.”
“Então?” Estava a sorrir mais relaxado. Olhou para o amigo e regressou à estrada. “Estamos longe. E mesmo que tenham ligado, vê lá, não têm nomes nem nada.”
“Viram a carrinha...”
“Muitas Marias...”
“Ouve, o velho estava com uma erecção imperial; os putos com uma para se comerem e o dono estava excitado com os ovos. O que é que sabem eles?”
“Joel? O que aconteceu?”
O soldado suspirou. Não conseguia acertar na emoção e saltava de exasperado para pensativo, e bufava. Mordeu os lábios e pensou mais um bocado. Queria responder com honestidade ao amigo, mas a honra e o dever proibiam-no. Estaria a trair o Império... mas, o Império tinha-se adiantado. E tentou explicar-lhe o melhor que podia:
“As minhas guerras começam pelo que aconteceu na televisão, entendes? As pessoas pensam demasiado, conspiram, traem e acabam mortas.”
Tomou o fôlego, enchendo o peito e pegou no discurso.
“Aquilo foi uma mensagem à tua amiga. A Cabeça tem de ter a Frederica, Bernardo. E o que a Cabeça quer, a cabeça tem. A mensagem foi para os últimos Da Assunção, mas somos nós, os Braços, as Pernas e os Pés que a vão entregar. E isto não vai acabar por aqui...”
Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga...
O condutor olhou-o como uma mola e para a estrada.
“Hã?”
“Nada... Ouve, eu tenho de ser honesto contigo. Não entendo nada do que disseste. De cabeças, braços, pernas e pés. A Frederica... A Frederica dizia o mesmo, mas estou tão perdido, meu...”
“Como assim? Bateste com a cabeça?”
“Não, pá. Eu...” Contar à Frederica tinha sido tão fácil pelo simples facto de ela ter visto em primeira mão. Contar a um soldado experiente e fixo em ideias? Complicado... “Eu não sou de cá.”
“E?”
“Eu vim de outro mundo.” Abriu a mala e cavou pelos bens para encontrar o telemóvel. “Sabes o que é isto?”
“Não faço ideia...” o carro começou a abrandar. “Algum rádio? És algum espião?”
“Não, porra!” O condutor estremeceu. “Vim de outro mundo! Havia uma porta no meu, em São Salvador. Abri e vim dar aqui. A Salvador! E foi quando vi a Frederica.”
“A Frederica Da Assunção em Salvador?!”
“Sim! Foi emboscada por braços e por uma Taisa.”
“Com um caraças, amigo! A primeira coisa que fazes é tramar a vida à Porcelana Branca! E já percebi o mergulho quando viste o dirigível.” Estava a rir, mas um riso alto e forte e natural. Havia pequenas flores húmidas nos olhos do Joel e era a primeira vez que o via a rir assim.
O Bernardo imitou por contágio. Ou estavam a ficar malucos ou aquilo tinha uma piada do catano. A primeira coisa que fez foi foder com o Império.
Estavam cada vez a andar mais devagar.
“Joel, o Império é bom ou mau?”
O condutor encolheu os ombros, “Só quero ser pago.”
A carrinha travou bruscamente e começou a soluçar. Arrancou aos soluços e voltou a parar, deslizando sem forças e virando para a berma. E morreu. As luzes aguentaram uns segundos, mas a noite devorou-as e deixou-os na escuridão.
“Merda,” O Joel resmungou e esmurrou o volante. “Merda!”
O Bernardo derreteu no banco, abraçado à mala e ao telemóvel. Apenas se ouvia as duas respirações.
O bafo branco a escapar-lhe dos lábios como fantasmas.
O Império é bom? O Império é mau? Só quero ser pago...
Passaram-se horas ou só minutos. No escuro, o tempo não tem forma. Mas passou-se algum tempo até aparecer alguém.
O Joel foi o primeiro a acordar com as rodas a pisar a terra. Acordou o outro e fez-lhe sinal para não se mexer.
Tirou a espada do chão e deslizou pela porta, escondendo-a nas costas.
Os faróis no máximo não deixavam ver para dentro do condutor, mas o Joel avançou com o instinto militar. Braço à frente dos olhos e arma escondida. A luz desapareceu e as duas portas abriram.
“Estão bem?” Perguntou o rapaz que estava na estação de serviço. A companheira meteu-se atrás dele. “Precisam de ajuda?”
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