Sintra
“A linha de Sintra é igual em todo o lado!” Bradou excitado perante o cenário familiar das pessoas a correrem para lá e para cá; das conversas marulhadas e da voz omnipresente da estação a anunciar os próximos destinos.
Da livraria à estação do Rossio foi um salto e era melhor apanhar o comboio ali do que noutra estação. O Bernardo não lutava, não conduzia e tinha os instintos de sobrevivência de uma cadeira, embora esta soubesse cair quando em perigo, mas conhecia as suas estações para ir a Sintra.
Daí que foi um choque quando viu o Rossio cheio fora da hora de ponta.
Havia todo o tipo de pessoas por ali, desde pessoas com fatos que iam trabalhar a crianças; estudantes e reformados. Outros que carregavam mochilas e varas de caminhada; alguns comiam e bebiam e outros que adormeciam mal se sentavam. Viram dois polícias a patrulhar e a desaparecer nas escadas.
Sentaram-se num banco da estação e deixaram o comboio partir para escoar a plataforma, mas não arriscaram no próximo e furaram para o fundo da carruagem. O comboio soluçou e arrancou, deslizando pela linha fora.
“Ei.” Cotovelou o amigo que ainda estava colado ao panfleto. “Agora é rápido.”
Nada.
“É a tua primeira vez?”
“Hum?” Levantou os olhos para a pergunta. “Num comboio?”
“Sintra.”
Acenou um sim que se evaporou no papel com a foto da noiva.
O Bernardo acabou por se calar e deixar o outro na sua cabeça. Afundou-se no banco, abraçado à sua mochila.
Ao contrário do seu mundo, os passageiros na carruagem não eram tão diversos e ricos. Sentiu a falta daquelas conversas cruzadas em crioulo, e tentar decifrar o que diziam, apanhando uma palavra aqui e ali. Também não ouviu o brasileiro. No seu lado, as pessoas abriam portas para tentarem sobreviver noutros países e se algumas conseguiam, havia quem odiasse ter as suas portas escancaradas. E qualquer coisa era melhor que a monotonia daquela carruagem.
A vista da janela seduziu-o, com os muitos prédios a multiplicarem-se; a passarem a fábricas a cada estação que paravam; a desaparecerem e abrirem em campos de cultivo; e às primeiras árvores que se erguiam da terra. Estas mudanças embalaram o Bernardo que acabou por ver o resto para dentro. O Joel acordou-o quando chegaram à estação terminal e todos saíam.
Esfregou os olhos para acabar de acordar e pediu ao amigo para ficar. A carruagem esvaziou-se dos últimos passageiros e os dois seguiram em último.
Foram atrás das pessoas pela estação e saíram para a rua.
O fresco recebeu-os com abraços e arrepios. Os rapazes não estavam preparados para aquela diferença, muito menos o Bernardo que não tinha outra roupa. Esta Sintra não era a que tinha na cabeça, cheia de turistas e lojas de bugigangas. Não havia fachadas ou casas velhas a cair, havia sim muito verde. Esta Sintra era limpa e as pessoas com as suas vozes de mar agitado, mais todos os ruídos eléctricos dissolveram-se num silêncio de igreja, respeitoso e solene.
Aspirou o ar puro enquanto o amigo caminhava à frente e procurou por sensações semelhantes no outro lado. Era quase como entrar numa bolha onde o tempo não tinha autoridade.
De mochilas às costas, bastões ou com crianças pela mão, os vários grupos seguiram pelos caminhos marcados e desapareceram nas curvas dos grossos troncos das árvores que viviam na serra há anos atrás de anos. Após pedirem indicações, os dois rapazes fizeram o mesmo e lá foram.
Há muito que a fauna deixara de mostrar curiosidade pelos visitantes, principalmente as aves que saltavam de ramo em ramo em amena cavaqueira; os outros animais levantavam as cabeças e voltavam aos seus afazeres, mas quando o Bernardo passou, talvez pelo cheiro ou pela aura de estranho, houve um silêncio de segundos que durou uma eternidade até retomarem as rotinas.
Três pequenos dirigíveis sobrevoavam as copas frondosas da serra para lá e para cá, mas desta vez, o Bernardo não se atirou ao chão. Admirou-os ao longe com um sorriso de aventura que borbulhava dentro de si. Só ignorava que alguém o olhava de volta.
Demoraram o seu tempo até verem a Tenda da Ninfa que não era uma tenda, mas uma casinha bucólica de porta aberta para receber o ar. Havia uma senhora sentada num mocho, um cesto colado às pernas e fios que subiam até às suas mãos. Duas grandes agulhas a dançar-lhe entre os dedos e um sorriso experiente nos lábios da velha.
Um grupo de músicos ensaiava folioso e ria muito entre cantigas e garrafas.
“É aqui” indicou o Bernardo. “Vens?”
“Vou explorar.” Despediu-se com uma palmada nas costas do amigo e dirigiu-se para a música.
“Força nisso.”
O Bernardo podia sentir o amigo se estivesse para aí virado, mas com a porta da Tenda aberta, havia apenas um objectivo e um só: o homem dos livros e voltar para casa. O amigo iria ficar bem.
Cumprimentou a velhota com um boa tarde e entrou para a sombra da loja, onde foi encontrar uma mesa com torres de livros tão diferentes dos da Bertrand. Todos os géneros que não estavam nas prateleiras da livraria mais antiga do mundo estavam ali representados. Reconheceu alguns do seu mundo e o coração derreteu-se ao ver um exemplar do seu livro favorito. Tinha a impressão de ter entrado num mundo aparte, numa casa rodeada por natureza, recheada de ideias, cheiros e banda sonora. Tão surreal e mágico e cada passo para dentro era um risco ansioso e uma possível desilusão.
O chão de madeira velha denunciou-o e a cabeça de um velho espreitou de uma torre de livros. Com o indicador nos lábios, nem deixou o Bernardo falar.
Saltou da cadeira e pôs-se ao lado do rapaz, puxando-o para si como se o conhecesse desde criança.
“O Guilherme disse-me que vinhas aí. És tu, não és? Não me enganei?”
Falava rápido, as palavras acabavam onde as próximas começavam.
“Ela está bem? A Frederica? Onde se viram? O anel?”
E só teve tempo de o tirar do bolso e mostrar ao velho da Tenda da Ninfa que deixou cair a boca. Fechou os lábios num sorriso satisfeito.
“Anda, vamos falar.”
Enquanto isso, lá fora, o Joel mostrou o panfleto ao grupo que apontou para as traseiras da casa. Seguiu de mãos nos bolsos, a espreitar pelas janelas, e rodeou a parede. Sentia-se de volta à guerra, como aquele tinido ao longe e a antecipação de uma emboscada.
Os pássaros chilreavam, os ramos vergavam com o vento e as folhas aplaudiam a cantilena no jardim. O Joel ouviu vozes de dentro e virou no último canto. E foi quando a viu.
A Vera de Salvador sentada no muro; a guitarra de pé contra o seu peito. Tinha o cabelo maior espalhado nas costas e estava vestida para o tempo fresco de Sintra.
A voz que nunca tinha saído das memórias do Joel contava histórias a um grupo de crianças atentas. Ao lado da rapariga, estava outro rapaz que a olhava apaixonado.
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