Todos os Caminhos Levam ao Túnel
O dia estava longe de terminar, mas os amarelos e os laranjas começavam a pintar o cenário. O sol espiava no céu todas aquelas pessoas que conspiravam. Amor, vida, novas oportunidades, música, livros, traição e glória.
A Mão acabara de vestir as últimas partes da sua armadura pálida quando o dirigível tocou terra, num intervalo de arvoredo à entrada da serra. Os quatro braços estavam reunidos com notícias - boas, más, relativo, mas o assassino estava perto, e mais importante, quem ajudou a Da Assunção a escapar. Apertou a manopla branca com a certeza de que não lhe iriam escapar pelos dedos. E achou aquele trocadilho tolo, mas estava sobremaneira entusiasmada.
Desceram da plataforma e subiram a serra.
*
O Bernardo foi encontrar o amigo sentado à porta da Tenda.
Já não havia velhota, apenas o Joel estático a olhar para lá do cerrado dos troncos.
O recém-chegado descansou a mochila no chão e sentou-se no chão, junto ao rapaz. Olhou para a careca do rapaz e reparou numa sombra castanha a florear-lhe. Até a própria barba rebentava. Há quanto tempo não passava uma lâmina, água, sabão, mesmo uma toalha. Nem fez uma semana, agora que pensou nisso. Chegou a este mundo há uma semana e estava a ver que ia ficar mais tempo – talvez até para sempre. Enterrou a cara nas mãos ásperas. Ouviu a voz do amigo.
“Como correu lá dentro?” A sua voz soava distante.
“Hum” pigarreou. “Mostrou-me um monte de livros sobre outros mundos e disse-me, vê lá isto, que tenho uma missão a cumprir antes de voltar para o meu mundo.”
“E tens?”
Zombou e respondeu que sim. A primeira coisa que iria fazer era parar a guerra. Sim, talvez tenha vindo aqui parar para acabar com a guerra e juntar as mãos de todos.
“Óptimo” concordou o soldado. “Mas se encontrarmos uma porta... Posso ir contigo?”
“Se é o que queres, aceito. Vem. Falar nisso, o senhor pediu-me para ver de um sítio antes de irmos embora.”
“Onde é?"
“Anda, falamos pelo caminho.” Enfiou a mochila pelo ombro que parecia mais pesada. “Oh, sim.” Apontou para dentro,”ele deu-nos alguns restos do almoço. Disse que não gostou e que nos podia safar no comboio.”
“Específico.”
O Bernardo e o Joel meteram-se ao caminho e o Bernardo explicou-lhe que iam ver de um poço. Esse poço também existia no mundo dele e era uma atracção para os turistas que enchiam Sintra.
“Só fui duas vezes a Sintra e nunca consegui chegar ao poço. Muita, mas muita gente a tirar fotografias e a fazer filas. Horrível.”
“Imagino.”
“Não estás muito falador. Encontraste a Vera da foto, foi?”
“Não. Já tinham ido embora.”
“Oh... Havemos de a encontrar!”
“Se calhar. Conta-me mais desse poço.”
“Ah, sim! Não sei muito mais, mas o senhor Constâncio disse-me que a serra de Sintra era um sítio mágico, e que o poço tinha uma energia forte. Quando lá chegarmos, talvez veja alguma coisa.”
“E é por aqui?”
“Sim, está marcado: olha.” Apontou para umas placas a indicar também o Poço Imperfeito.
E caminharam pelos trilhos abertos por guias; seguiram as cordas e as placas para o poço, deixando jardins, fontes e outros desvios insidiosos para trás. Talvez mais tarde, agora queriam ver o sítio antes de se irem embora.
À boca de uma passagem escura, o Bernardo ligou o telemóvel pela primeira vez desde há dias e liderou a exploração. O drip drip em eco acompanhava os passos cautelosos dos rapazes. A luz artificial era suficiente para os guiar, mas menos mística. Até que chegaram a uma saída que dava para o poço. O Bernardo fora o primeiro a sair para a claridade que fugia ao dia e o amigo seguiu-o. Ambos olharam para cima, mas apenas o Bernardo soltou o seu uau. O Joel permaneceu calado, com uma mão no bolso e a outra no cabo da espada. Como se pressentisse que alguma coisa iria saltar daquelas passagens e arrastá-los para onde ninguém os pudesse trazer de volta.
“Não é aqui” disse o Bernardo por fim. “O sítio das fotos não é aqui, Joel. O poço do meu mundo é mais cuidado. Olha para isto!”
De facto, desde a base às paredes, até à boca do poço, tudo era decrépito e parecia querer ruir a qualquer altura.
“A placa dizia imperfeito... É isto” retorquiu o Joel.
“Talvez haja outro. Só pode. Anda!” comandou o rapaz de telemóvel em riste.
“Olha onde estás, amigo. É quase noite e não dá para ver nada. Ainda são muitas passagens. Vamos. Voltamos amanhã com luz.”
“Sinto que estamos perto, Joel. Ah, porra. É frustrante.”
“Deve ser difícil ter o que queremos à nossa frente e não a podermos ter” concordou com uma secura fria.
Mas quando o Bernardo se virou para a voz, encontrou-a já muda. O Joel tinha o dedo nos lábios e os olhos arregalados. A outra mão estava dura, à volta do cabo da espada.
“Vozes. Por ali” sussurrou para uma das passagens em frente. “Um homem.”
O Bernardo não tinha desses instintos, mas procurou a sua espada em vão. Tinha ficado no carro, à entrada de Lisboa. Agachou-se e trocou de posição com o Joel que se pôs a cobrir o terreno como um predador.
*
“Sabes como se chama este poço?” perguntou a voz do Fasto que emergiu da escuridão. Ele trazia uma lanterna com luz decente.
“Como?”
“Poço Iniciático. Há outro mais à frente, mas este é mais bonito. Romântico.” Puxou da Vera para a beijar. A sua face ainda estava húmida.” Queres falar do que se passou?”
“Estou bem. Não te preocupes.” Devolveu o beijo no queijo do amante.
“Ei, pensava que ele estava morto. Que aconteceu?”
“Não sei, Fausto. Não sei. Estou tão confusa. Que raio podia fazer?”
“Podiam ter falado mais.” Ergueu-lhe o queixo para lhe espreitar a cara. “Imagina que também é confuso para ele. Chegar a casa e descobrir que está morto. Pais, amigos, namorada, tudo avançou. Menos ele. Não deve ser fácil.”
“Não...” Encostou-se ao peito do Fausto que balançou naquele chão liso e antigo. Por cima da cruz que apontava para todos os cantos do mundo e assim bailaram solenemente ao sabor da noite que cobria a serra com um manto estrelado.
“Quando voltar a Salvador, falo com a mãe dele. E com ele. Merece. Desculpa.”
“Não tens de pedir desculpa. E se achares que faz sentido voltarem a estar juntos... Diz-me.”
“Fausto, não. Não.” Agarrou-lhe a cara, prendeu-a entre as mãos geladas e encheu-a de beijos húmidos. “Tu e eu.”
Apertaram-se e partilharam o calor dos corpos.
“Vamos voltar?”
“Já? Só me contaste o nome do poço. O que faziam aqui?”
“Bem, eu, não sei bem, mas!” exclamou, “é um sítio muuuito misteriooso. Rituais e, e, nove andares! Nove círculos do inferno!”
“És tão tolo.” Riu-se e rodeou-lhe o pescoço num abraço.
“Casa comigo.”
“Já vamos casar.”
“Agora. Aqui.”
“Agora? Aqui? E quem oficializa?!” Repetiu com todo o sarcasmo apaixonado.
“As almas penadas do poço!”
“Cala-te.”
Os lábios aproximaram-se num beijo e abriram-se para receberem os amantes. Os braços puxaram-se ao ponto de querem ocupar o mesmo espaço. O Fausto virou-a contra uma das colunas e ergueu-a pelas pernas, que se ataram à volta do homem como a serpente da tentação. Quando chegou ao pescoço da Vera, um fio de calor escapou com um gemido da boca dela.
Foi então que ela o viu. Cara esculpida pela raiva, a deslizar na sua direcção - uma das almas penadas com uma lâmina no ar.
“Joel, NÃO!
Sem comentários:
Enviar um comentário