Flashback
Era uma vez, um rapaz e uma rapariga. Novos, e apaixonados. Ela por ele, ele demorou a lá chegar. Fizeram a escola juntos – ou até onde deu. Ela foi trabalhar com o pai, ele para academia. A certa altura, durante uma licença dele, fizeram-se noivos.
Quando voltar, não tens de trabalhar mais. Podes tocar o dia todo.
Mas não voltou. Apenas a notícia de que tinha caído em combate. Enterram um caixão vazio.
A noiva, namorada, amiga, colega de escola chorou, berrou, amaldiçoou tudo e todos. E quando o coração se alinhou com a cabeça, e os olhos secaram, rumou à casa da mãe dele. O pai tinha sumido, a mãe ficou para os lembrar. As duas choraram entre vinho e pão. Falaram as horas e confessaram-se. A noiva pediu perdão e a bênção da sogra e partiu livre.
Semanas depois, com as vindimas a espreitarem, um grupo musical passou pela aldeia e instalou-se nos arredores. Não eram um circo, mas montaram tendas, bancas de comida e trouxeram muita animação. Todos gostavam de os receber porque os seus ventos sopravam festas e bons tempos. Eram bom presságio para qualquer actividade e caramba, se não a vindima não foi rica.
E num dia, encostada à cerejeira do monte, a Vera estava metida para si quando a sombra de um moço se apresentou.
“Que fazes?” perguntou uma voz masculina.
A Vera afastou a cabeça do caderno e mirou o rapaz à sua frente. Cabelo arruivado, puxado para trás e atado num elástico. Os olhos sorriam quase como os lábios, e não havia uma ponta de presunção em nenhum deles.
“Uma lista.” E voltou a atenção para baixo.
“Interessante. Das músicas que queres ouvir logo?”
Bateu com as páginas e guardou o caderno entre as pernas.
“Engraçado.”
“Eu tento, eu tento!” Esfregou a nuca sorridente.
Mas a rapariga não deu corda. Apenas o vento monte acima, por entre a relva e a árvore. Ao longe, ouvia-se alguém a tocar numa tenda.
“É o meu primo a testar o som.”
“Pronto...”
E como ela não estava para conversas, o rapaz desceu para as tendas. E acabou por aí.
Mas no próximo dia, voltaram a encontrar-se. Ela com o caderno e ele com uma guitarra.
“Ei, ontem não me apresentei. Sou o Fausto.”
“Vera.” E foi ela a estender-lhe a mão. O rapaz aceitou-a e devolveu-a, surpreendido com a suavidade daquela mão.
“Importas-te?” Perguntou-lhe, apontando para o chão.
“Por favor.”
Rodeou o tronco da cerejeira e aterrou na relva. Assentou a guitarra no golo e dedilhou o início de uma canção. A porta das recordações abriu-se de fininho e regressou a uma cozinha, com loiça empilhada e alguém que tinha amado. Ele assobiava aquela música quando caminhava ou trabalhava em alguma coisa, mas como se chamava?
"Como se chama a música?"
"Mama, I'm coming home, do Ozzy."
"O que quer dizer?"
"Mãe estou a chegar. Ou algo assim."
Mas ele nunca chegou...
“Pensava que só tocavam pimba” troçou para se trazer de volta. Ele fingiu estar insultado.
“Isso são eles. E os velhotes adoram!”
“Já reparei, já reparei. Todos coladinhos."
“Tão verdade. Tenho de admitir e não me julgues, mas também toco pimba. Mas" e quis enfatizar o mas, "também toco mais mexidas. Conheces os Beatles?
Tocou com os nós dos dedos na base da guitarra e começou uma música nova, mas não dizia nada à Vera.
“Rádios piratas, conheces?”
“Sim.”
“É de lá que tiramos estas músicas.”
“E se alguém faz queixa?”
“Pff, não as toco nos bailes. O pessoal quer é ouvir modinhas com trocadilhos picantes."
Agora riu-se ela. Ele achou que foi o som mais belo que tinha ouvido.
Sacudiu os dedos pelas cordas e trauteou qualquer coisa. Quando apanhou o ritmo, começou a rimar com o riso dela.
"Oh por favor, isso nem rima." Revirou os olhos.
A letra não rima.
Devia ouvir o meu pai na concertina!
Bastou aquilo para a atirar ao chão de tanto riso.
"Ei, é verdade! Já ouviste o velho!"
"Que parvo!"
Parvo, o bardooo!
Suspiram o riso e secaram as lágrimas.
“Como vai a lista?” Lembrou-se por fim.
A rapariga estendeu-lhe o caderno que ele aceitou. Ela ainda lutava para controlar a respiração. Ouviu-o a folhear, o papel contra o papel e a bichanar enquanto lia:
1 – Sair de Salvador
2 – Viseu
3 – Lisboa
4 – Aprender música
“Parece-me bem. Tens tudo pensado. E onde queres aprender música?” Entregou-lhe a lista
“Numa escola de música. Lá deve haver muitas.”
“Certo, mas em Viseu também deve haver. Nem tens de sair daqui.”
“Primeiro ponto.”
“Sim, sair de Salvador. Alguma razão em especial?”
“Não há nada que me prenda aqui.”
"Os teus pais?"
"Vão estar sempre aqui para os visitar."
"Certo."
Desta foi ele a calar-se quando ela esperava mais. Pouco depois, desceu para as tendas com até amanhãs.
Três dias, três encontros.
O Fausto correu para a árvore e sorria de orelha a orelha quando anunciou sem fôlego: “tenho uma ideia para a tua lista.”
“Ai é?”
“Sim! Porque não vens connosco?”
“Han?”
“Arrancamos daqui a uns dias, certo? Depois vamos correr o resto das aldeias até Lisboa.”
"Sim?"
“Poupavas dinheiro em viagens e não esperavas por Lisboa para aprender a tocar. Podias aprender connosco!”
“Contigo, queres dizer.”
“Se quiseres, sim! A menos que queiras aprender concertina."
“Pensaste nisto a noite toda?”
“Nem por isso. Foi a minha mãe a sugerir.”
Algo dentro dela estremeceu. Aquela sensação quente de uma família unida e que fala. E havia algo na excitação do rapaz Fausto.
“Diz-me, meu caro: e dinheiro? E comida?”
“Toda a gente trabalha no grupo e toda a gente come e dorme. Haverá algo para fazeres."
A Vera saltou da relva e sacudiu o vestido de flores. Apanhou o caderno e abriu na lista.
“Estás a sugerir ignorar o meu plano? Trabalhei durante dias nele" resmungou. Os lábios tremeram e rasgaram num sorriso zombeteiro.
“Desculpe lá, mas já vi melhores listas de mercearia" gozou o parvo, o bardo. Sim, ele tinha um jeito com as palavras. Os dois riram à gargalhada.
E naquele fim de tarde, quando o sol se ia deitar, a Vera rasgou a lista.
“Os meus pais vão-me matar...” suspirou de ansiedade e ajeitou o cabelo para trás da orelha.
“Os meus podem falar com os teus.”
“Tenho seis anos? Não é preciso.”
Ao terceiro encontro, nenhum deixou o outro sozinho e ficaram os dois encostados à cerejeira. Houve mais festa nessa noite e a família do Fausto repetiu o reportório que o povo adorava. Dançaram, comeram e beberam bem. A vindima estava a correr lindamente.
O Fausto subiu ao palco e tocou uma das suas músicas estrangeiras, mas sem cantar. Mas ela estava em conluio com ele e sabia qual era. Ele sorria só para ela. Ela sorria só para ele.
O resto dos dias passaram num ápice e ela despediu-se dos pais. Prometeu ligar uma vez por dia enquanto estivesse em viagem e duas vezes quando estivesse em Lisboa.
Passaram-lhe algum dinheiro para despesas e umas garrafas de vinho para os anfitriões.
Dias. Semanas. Meses.
O grupo desceu pelo país, tocou e encantou. Nas pausas, o Fausto ensinou a Vera a tocar e não demorou até se juntar em palco com o grupo; depois só com o Fausto num dueto. Esta é para os apaixonados e derretiam os corações. Não demorou muito a cair por ela. Ela demorou a lá chegar.
A Vera trabalhou imenso para pagar a sua parte. Gostavam dela e ela de todos, menos do primo que era parvo.
E, numa noite entre concertos e cantorias, ele declarou-se. Ela que não era burra nenhuma, já estranhava a demora.
Houve um beijo, outro. E uma serenata improvisada.
Quando chegaram a Lisboa, a Vera já não tinha interesse em estudar. Trabalhava, sabia tocar e preferia a liberdade da estrada do que os livros entre paredes. Mais, agora estava com o Fausto e estava para lá de feliz. Iam casar no final da digressão e agora era para valer.
O único concerto que iam dar no Coração do Império seria em Sintra. Ela, o Fausto e os primos iam dar um concerto experimental que ela andou a magicar. Absorveu toda a música estrangeira do namorado, toda a música portuguesa dos pais dele e começou a compor umas coisinhas que o primo parvo começou a cantar. Todos concordaram que tinha pernas para andar e nada melhor que um concerto pequeno para testar.
Iam estrear-se num palco rodeado de árvores e bicharada. O par não podia estar mais feliz.
No dia do concerto, quando o casal descansava, um grupo de crianças correu para ela para lhe pedir lições. A rapariga da aldeia que já se achava capaz de ensinar, não quis recusar. Tocou uma, duas e à terceira canção, um fantasma materializou-se na sombra da Tenda da Ninfa.
Os dedos congelaram nas cordas, a voz agoniou-a e engoliu para não vomitar. Os olhos traíram-na e voltaram a escorrer.
"Olá" saudou o Joel.