Cátia
Intercidades a caminho de Santa Apolónia
Tarde
Ninguém a podia culpar de ser parecida à Kate Bush e não se aproveitar disso. A genética é engraçada, e quando funciona, funciona muito bem. A Cátia não só parecia a Kate como mantinha o cabelo igual à fase The Kick Inside; usava vestidos compridos e soltos e era uma pessoa com bastante energia. Só não cantava. A voz roubou-a ao pai, grossa e com um lindo sotaque açoriano.
A Cátia saiu da terceira ilha para ir passear ao Continente antes de se decidir por um caminho universitário - o pai dizia Arquitectura; a mãe dizia Direito. A Cátia sonhava com Cinema, ou Teatro; ou Dança; ou Letras... O cabeça fantasiava com muitas coisas e vai daí, decidiu tirar um gap year, passar uns tempos com os tios na Guarda e visitar algumas universidades. Ou, então, trabalhar e ficar por aí.
O dinheiro não era problema, mas sim tomar decisões.
Naquele dia estava a viajar até Lisboa quando o destino lhe deu um toque no ombro. E outro mais forte que a assustou.
As mãos correram sozinhas e atiraram o tablet ao ar e depois ao chão, arrastando o fio dos auriculares e o coração atrás. Voltou-se para a voz e sorriu quando encontrou o velhote.
“Desculpe” disse-lhe, “mas está no meu lugar.”
“Oh! Como estava sozinha quis vir para a janela.” Apanhou o tablet e o cabo e ia saltar para o seu banco quando o homem a impediu. Sentou-se ali mesmo e ajudou-a.
“Deixe-se estar. Assim dá para esticar as pernas.” Esfregou-as e encostou-se às costas do assento. Quando abriu os olhos, a Cátia mirava-o atenta.
“Sou a Cátia e tu?” Apresentou-se.
“Trata os mais velhos assim, menina?”
“Não és assim tão velho. A vida é muito curta para cocozices. Também não trato os meus pais por você.” Incrível como conseguia debitar tanta palavra por segundo sem vir à tona respirar. O Augusto pesou os argumentos da moça e concluiu que ela não tinha dito nenhuma mentira.
“Augusto.” A Cátia esticou a mão que o velho aceitou. “Que estava a ver aí?”
“Trata-me por tu, Augusto. Já tenho idade para ser a tu filha. Estava a ver o La La Land. Conheces?”
C’um caraças! “Certo! Desculpa lá. Não, não conheço.”
“É um musical. Duas pessoas gostam uma da outra, mas não ficam juntas. É muito bonito.”
“E o que tem isso de bonito?” Perguntou o Augusto um pouco chocado com a noção de beleza da moça. “Se gostam uma da outra, devem ficar juntos.”
A Cátia abriu a boca, mas fechou-a logo. Abriu-a de novo quando tinha a certeza do que dizer: “Às vezes o coração quer, mas a cabeça não. Não naquele momento ou naquelas circunstâncias. Duas linhas paralelas.” Ergueu os dois indicadores. “Correm lado a lado, mas nunca se encontram.”
“O que acontece à outra linha quando a outra desaparece?” Perguntou o outro.
“Continua até desaparecer. É essa a beleza da tragédia: continuar apesar de tudo.”
O Augusto voltou-se para o corredor de olhos fechados e focou-se em alguma coisa para lá das janelas.
“O que vais fazer a Lisboa?” Ela tentou recuperá-lo, mas ele respondeu sem se voltar.
“Despedir-me de alguém.”
“Vai viajar?” Ele riu-se.
“Digamos que sim.
Calaram-se por uns minutos, mas ele ainda lhe sentia o olhar estudioso a queimar a mente. Curiosa, ela.
“’Tá bem. Vou contigo.” Han? “Não conheço Lisboa e sinto que não estás bem. Ajudas-me a mim. Ajudo-te a ti.”
“És tola. Nem me conheces.”
“Temos tempo até lá. Começas tu ou eu?”
“Os teus pais não te ensinaram nada sobre estranhos?” Ela acenou que si e sorriu um sorriso rasgado.
“Tu não és um estranho.”
A Cátia desligou o tablet porque já tinha visto o La La Land umas dez vezes ou mais e enrolou o cabo. A vida não é um filme, ela sabia, mas às vezes encontramos pessoas com enredos dignos de um Oscar bait. Ela tinha encontrado o Augusto e estava decidida a descobrir que género de filme seria ele.
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