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quinta-feira, 4 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 4 | O Bitoque Perfeito

Augusto
Nelas 
Almoço - Tarde

O velho desceu na estação de Nelas às cinco para as treze. Estava agasalhado com um sobretudo de lã castanho; uma camisola térmica de desporto branca e umas calças de bombazina beges por baixo. Sessenta e seis anos não é bem velho, mas é a caminhar para lá e as trincheiras na cara davam-lhe ainda mais idade. E o tabaco. E a bebida. 
O Augusto enfiou a mão trémula no bolso direito e tirou um maço amarfanhado de SG Ventil, prendeu um cigarro entre os lábios e raspou a cabeça de um fósforo. O comboio afastou-se com a cacofonia do metal velho a arrastar-se. Expeliu o fumo para o ar da estação vazia de Nelas e seguiu em frente, rua acima, na direcção do restaurante Pa’Nelas. 

Ainda não havia muita gente para almoçar, pelo que não foi difícil arranjar uma mesa à janela. Não quis a carta, pediu logo um bitoque à casa e um jarro de vinho. Ele estava numa missão: encontrar o melhor bitoque nacional ou um bitoque que fosse melhor do que o do amigo. 
O amigo e ele tiveram um restaurante junto ao castelo, o Tropa, onde cozinhavam o melhor bitoque de Lisboa e arredores. Liam o cliente e preparavam o prato à sua medida – nunca era igual. As pessoas iam lá pela curiosidade do feito e pelo sabor da comida. A vida aconteceu e o Augusto saiu. O amigo continuou. Agora, este estava para morrer ou já o tinha enquanto almoçava... 
O Pa’Nelas foi enchendo enquanto esperava pelo almoço, com o pessoal trabalhador a ocupar as mesas e a sentar-se ao balcão. O bitoque chegou com o vinho. Começou por observar o prato de barro com o bife aconchegado pelas batatas, picles e o copo de arroz. O ovo a cavalo ocupava o bife quase todo, mas só havia vestígios de um molho. Franziu o nariz. Inclinou o bife para lhe ver o rosa, pelo menos estava mal passado. 
Comeu com um desinteresse silencioso, apenas levantando os olhos para as notícias, mas eram só desgraças como um vigilante a matar que matava padres. Voltou a atenção para as paredes do Pa’Nelas e para a poesia taberneira. 
Comia e comparava: o sabor podia estar melhor; o arroz podia ter mais sal; as batatas podiam ter fritado mais tempo e o molhou secou rápido, mas a carne estava tenra. O vinho era carrascão, mas cumpriu o dever de empurrar tudo para baixo. Já tinha manjado pior, mas teria de continuar à procura. 
Pediu a continha e a bica. Atentou na sinfonia familiar, nos clinques dos talheres na porcelana e no vidro; nas vozes misturadas com o mastigar e nos risos. O empregado, de camisa branca e calças pretas, chegou com o café e a conta - bebeu-o devagar e virou o recibo ainda mais devagar. 
Até se come barato na Beira, pensou. Antes de pagar, tirou a caneta e o bloco do sobretudo pendurado nas costas da cadeira e escrevinhou: Aqui pode comer / E até se come bem / Amigo não fia amigo / Não tem dinheiro, peça à sua mãe. 
Pagou a mais, puxou do segundo cigarro e desceu pelo mesmo caminho até à estação. Eram quinze quando chegou o seu. 

Subiu as escadas, passou pela casa de banho no fim da carruagem e avançou pelo corredor, a contar os lugares. Chegou ao 24 e viu-o ocupado por uma moça mergulhada num ecrã portátil. Chamou-a. Quando não respondeu à segunda, tocou ao de leve no ombro, mas bem que a podia ter sacudido porque a miúda ia morrendo de susto. Atrapalhou-se com o ecrã que caiu, com o fio dos auriculares atrás. Saltou no lugar e encarou o velho. Respirava rápido, mas rapidamente vestiu um sorriso. Parecia bastante nova, mas o Augusto reparou no brilho dos olhos que só as gentes velhas tinham. 
“Desculpe.” Disse embaraçado, “mas está no meu lugar.”

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