Diogo
Noite e manhã
???
À segunda cerveja começamos a discutir se Portugal tem alguma Área 51. Não tem, mas é porreiro imaginar o que se faria lá. O que temos é um excelente plano e investimento na robótica e um desinteresse pelas aldeias do interior. Uma mente brilhante, que prefere ficar anónima, propôs um plano com partes de brilhante, de ficção científica e com possibilidades de retorno a longo prazo: povoar uma aldeia com androides. Sim, altamente arriscado, mas dado o isolamento da aldeia, seria fácil controlar o teste de uma possível introdução dos androides no mercado global.
Portugal seria pioneiro! À terceira cerveja isto foi de génio...
Correu porque foi mandado; porque foi seguido e correu o resto para se afastar.
Parou quando se esgotou a adrenalina, o fôlego e o mundo. Esbarrou numa parede de negro e não havia nada depois do nariz – nem o castelo ou as luzes da cidade. Soube das árvores pelo vento que correu por elas, pelos ramos a dobrar e as folhas a sussurrar. Um hoot voou algures e um bater de asas deixou-o para trás.
Correu por susto, os passos a bater na manta morta do mato, a estalar a sua presença, e sempre em frente. Até que que reparou nos pontos amarelos, luzes. Civilização à vista. Correu por esperança e lançou-se pelos ramos invisíveis que arranhavam a cara, mas dona sorte não o acompanhou e uma pancada em cheio na testa roubou-lhe o chão dos pés. Um flash branco inundou as luzes... e mais negro.
Foi tudo muito rápido e quando acordou já era de manhã. Bem, afinal ainda passou muito tempo estendido na mata, mas ao acordar o céu ainda estava coberto de um azul madrugador e o resto da realidade ganhava forma. Antes de ver o tronco que lhe saltou para a frente, sentiu-o na testa – um alto e um fiozito de sangue. E muita fome. A última refeição tinha sido há horas – dias? A noção de tempo era estranha ali, num momento estava a segui-lo com um fio de costura, mas do nada tinha nós em cima de nós e estava preso. Foi então que reparou que não estava sozinho. Olhos atrás de bicos olhavam para baixo a arrulhar, flap flap flap saltavam e desapareciam para serem o pássaro madrugador.
Desta vez não correu, mas seguiu devagar, com a mão nas árvores, na direcção de onde julgava ter visto as luzes. Uns minutos frios mais tarde viu as primeiras casas. Não tanto uma casa, mas um curral aberto com bácaros a fuçar no chão e umas galinhas no canto. A luz veio de uma lâmpada pendurada. Alguém que estava a dar comida aos bichos. Depois do curral viu umas poucas casitas de pedra, portadas de metal e muros com videiras a espreitar.
Tirando os bichos, não havia vivalma ali. Mais à frente ouviu o raspar e o cair de pedritas em plástico. Aproximou-se da casa e encontrou uma velhota nos degraus a debulhar feijão verde e a deitá-lo para um balde. Vestia uma peça negra e uns tamancos de borracha, na cabeça tinha enfiado um chapéu cinzento e na cara um sorriso gasto. Toda ela era rugas e trabalho.
“Desculpe?” Cumprimentou.
A velhota moveu a cabeça do balde para o Diogo sem mudar de expressão.
“Bom dia, menino” cumprimentou de volta e regressou a atenção para a tarefa.
“Sabe-me dizer onde estamos?”
Repetiu o gesto ensaiado, a olhar para lá do rapaz.
“Aldeia dos Andros.” Voltou ao feijão.
“OK... acha que posso fazer uma chamada?” Perguntou quando reparou, ainda no mato, que o tinha deixado no carro.
Da mesma maneira, a velha passou do balde para ele, mas desta vez apontou para a direita, para um pelourinho ao fundo.
“Na praça.” Continuou.
“Obrigado...”
Havia algo de estranho naquela senhora e correu várias desculpas para o comportamento irregular, talvez não gostasse de estranhos ou de pessoas pela manhã, mas... Não. Pelo caminho, reparou nas cabeças a espreitar pelas cortinas de rendas: todas velhas e um arrepio puxou-lhe os pêlos dos braços. Uma porta abriu e um velho desceu o degrau, seguiu em frente com a expressão que jurou ser igual à da velha e foi de encontro à parede.
O Diogo apressou-se para ajudar, mas o velho continuou a andar contra a parede até virar de direcção e seguir para o pelourinho.
“Bom dia, menino” saudou o velhote sem danos visíveis na cara, apenas com a boina torta.
“Bom... dia...” repetiu estúpido. Seguiu-o à distância até chegarem ao pelourinho e ver o homem a desaparecer num barracão aberto, com mesas na rua e outros velhos semelhantes sentados.
Bom dia, menino! Bom dia, menino! Bom dia, menino! Bom dia, menino! Repetiram um atrás do outro. Mesmo tom de voz, entoação, mesmo principio e fim.
As mesas vermelhas da Super Bock tinham cinzeiros, mas vazios; copos de bagaço, mas vazios; jornais, mas por ler. E, no escuro do interior, a televisão falava, mas para ninguém...?
Apenas o velho da parede e o dono estavam lá dentro.
Bom dia, menino! Bom dia, menino! Ouviu quando entrou.
O empregado estava ao balcão e tirava cafés que despejava no lava-louças; o velho estava sentado a olhar em frente, na direcção da colecção de garrafas expostas.
“Queria usar o telefone, se faz favor” pediu a alguém.
“Queria. Já não quer?” Respondeu o empregado num tom monocórdico que não mostrava gozo nem chico-espertismo. Nem o outro reagiu.
Encontrou o telefone e tirou-o do descanso, mas quando ouviu o som da linha telefónica teve uma ideia...
“Bom dia!” Berrou do telefone.
Bom dia, menino! Bom dia, menino! Repetiram.
“Boa tarde?”
Bom tarde, menino! Bom tarde, menino!
Meu deus, pensou. Que raio se passa aqui? Deixou o telefone, foi ao balcão e tirou um pacote de batatas fritas que abriu à patrão e comeu uma. Nada. Comeu outra e outra e acabou com elas. Nada de nada. Serviu-se de um café. Nada.
“Ora, bons dias, gente!”
Bom dia, menino! Bom dia, menino!
Riu-se baixinho. Riu-se quando se sentou e riu-se que nem perdido quando o empregado lhe tirou outro café.
“Obrigado e bom dia!”
Bom dia, menino!
O Diogo podia não saber onde estar, quando estava e porque estava, mas há muito que não sentia aquela validação dentro de si: a monotonia da rotina que adorava, a repetição de pensamentos, diálogos, acções. Sentiu-se validado e nada ansioso. Estava em casa...
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