Cátia
Augusto
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Nem estava muito frio à noite, apenas uma temperatura normal de fim de verão e ainda não era para dormir de meias ou com calças de pijama, mas a Cátia estava a gelar debaixo da parede de lençóis, a bater o dente e a tremer como se tivesse febre.
Chegou-se mesmo a pensar que fosse isso quando também se queixou das articulações e dos músculos dos braços e das pernas de perros que estavam.
A Laurinda, ou a Bonna, encostou a palma à testa da miúda e não lhe viu sinais de febre, mas estava fria como mármore. Meteu-a na cama com todas as mantas e a roupa térmica que tinha e voltou mais tarde com um caldo feito pela dona Francisca, a Quicas. Veio a fumegar da panela, para a tigela e para a colher, mas o apetite era zero naquele momento. Engoliu duas colheres a custo e duas lágrimas nasceram no canto dos olhos de tão boa que estava; sorveu mais duas, demorou-se com o calor do caldo na boca até o transportar garganta abaixo até ao estômago.
Sorriu à Laurinda e agradeceu; pediu desculpas pelas figuras e que podia dormir noutro sítio para a outra se deitar. A Laurinda, que naquela noite já não ia ser a Bonna, e a Francisca sacudiram-lhe aquelas ideias tontas e obrigaram-na a descansar e a dormir. Deixaram um griponal na mesa e um copo de água e saíram do quarto uma e depois da outra. A porta ficou fechada para a separar dos risos e das conversas do lado de fora, a única luz de presença vinha da Lua que entrava ao serviço.
A Cátia acompanhou o rasto da Lua que cortava o quarto ao meio e pensou na distância que a dividia do Augusto, no que ele andaria a fazer ou se estava bem. Perdida em ses, acabou por perder a luta contra o cansaço e ferrou em posição fetal, com os braços a puxar os joelhos contra o peito para não deixar o calor escapar.
*
Um velho surgiu à porta da carruagem e desceu ao apeadeiro.
Passou a mão por cima do sobretudo e sentiu o volume num dos bolsos, tirou-o e de dentro tirou um cigarro direito; a própria caixa estava novinha em folha e não se lembrava da última vez que fumou de um cigarro novinho em folha. Raspou o fósforo de madeira e com a chama a resistir à brisa, acendeu o cigarro; sacudiu o pauzinho e enfiou-o no bolso esquerdo; inspirou o cigarro de olhos fechados e todos os stresses do mundo eram insignificantes naquele momento; um efeito temporário e falso que lhe dava uma pausa momentânea à cabeça. Expulsou o fumo para o ar e ficou a vê-lo a seguir em frente, a dissipar-se no apeadeiro. O fumo revelou um banco de pedra e uma miúda sentada à ponta, com a cara enfiada num rectângulo e auriculares a isolá-la do mundo.
Sentou os ossos na outra ponta, a fumar na sua quando a Cátia o cumprimentou com o sorriso dela:
“Então?”
“Olá” saudou-a.
“Encontraste o que procuravas?”
Ele matutou um bocado naquilo. O que procurava ele? O que procurava... Ele? O melhor bitoque? Encher o caderninho com a melhor poesia de tasco? O perdão do melhor amigo? Esquecê-lo? Redenção? Ele era velho e nem sempre os velhos têm mais experiência ou planos delineados; às vezes andam perdidos em apeadeiros no meio de nenhures até ao próximo comboio.
“Acho que não.”
“Pena...”
“E tu?” Devolveu o Augusto.
“Acho que estou mais perto, mas bem, desde que nos separámos: tive um ataque de filosofia no meio do Tejo, uma quebra de tensão e conheci gente nova e vim à casa delas. É incrível! Homens e mulheres que fazem o que bem entenderem com o corpo - e com a cabeça.” Respirou com a excitação. “Algumas fugiram de casa e andaram perdidas sem saber para que margem nadar. Na casa da Quicas podem ser o que quiserem!”
“Espera... na casa da Quicas? Ó moça!” Virou-se meio chocado e embaraçado, a parir uma gargalhada.
“Ei, não sou uma tapadinha e sem bem o que se passa. E mesmo que o fizesse, ninguém tinha nada com isso! Podemos fazer o que quisermos e cheguei à conclusão que não posso seguir o que o meu pai e a mãe querem. Então... vou para cinema.”
“Cinema? Interessante...”
“É, não é? Era quase óbvio. Ou cinema ou literatura. Ou um bocadinho dos dois.”
“Parece que ainda estás confusa” troçou o velho.
“Pois... posso sempre escrever para cinema.”
“E porque não?”
Deixaram o silêncio do apeadeiro preencher os espaços entre os dois. Ele a terminar o cigarro, a mastigar o ar, e ela voltada para o seu ecrã e para as suas histórias.
“Comi um bom bitoque há dias” comentou.
“O melhor?”
“A carne tinha um sanguito e o molho estava no ponto; arrozinho solto e um o ovo estrelado no tempo certo.” De olhos fechados, parecia que estava a tentar invocar a imagem do prato.
O Augusto hesitou e respondeu com um sorriso.
“Muito bem, ficou tudo bem entregue”
“Mas a busca continua!”
“Linda menina.” Esfregou o maxilar, por cima da barba aparada e suspirou. “E tens escrito no bloco?”
“Não te preocupes.”
“Então posso ir em paz. A minha missão está segura contigo.”
“A viver pelos outros, han? Acabo de dizer que não quero seguir os meus pais e deixas-me isto.”
"Então deita tudo fora. Bota-lhes fogo!” Riram-se. As imagens do filme a passarem sem ninguém as ver; o poste com o relógio no apeadeiro a passar horas infinitas e os esboços de pássaros bem no alto a desaparecerem de vista.
“Onde estamos?” Perguntou o velho a olhar em volta. Por todo o lado, campo prolongava-se até o perderem de vista; fardos de palha estavam amontados aqui e ali e a relva amarelava do Sol que nunca se punha. A Cátia levantou a cabeça e olhou na direcção da cabeça do amigo; mordeu a bochecha por dentro, a pensar em algo profundo para responder até que se fez luz.
“Estamos naquele momento antes de um filme carregar. Quando o ecrã está escuro e vemos o nosso reflexo no ecrã a pensar na vida.”
Aquilo gerou uma certa confusão no Augusto, mas se pensasse muito nisso até fazia algum sentido. Estamos sempre à espera que as coisas comecem...
“Olha, vem aí o teu.” O pouca terra pouca terra ouviu-se ao longe, bem baixinho e veio a correr como uma chaleira a ferver água. A carruagem materializou-se no horizonte e deslizou pela linha até abrandar e abrir a quarta carruagem à frente do banco.
“Então adeus” despediu-se a Cátia.
Levantou-se do banco como uma mola.
“Upa! Dás-me um abraço?”
“Claro!” Saltou do banco e para a frente do velho; envolveu-o num aperto de polvo e apertou mais um bocadinho para ele o levar consigo. O Augusto cheirava a tabaco, mas sem chegar a ser desagradável, a água de colónia e a memórias de muitas vidas. Afastaram-se com um sorriso e o Augusto subiu para a carruagem. A Cátia ficou a vê-lo a atravessar o corredor e a sentar-se à janela. Acenaram e a carruagem tremeu, afastando-se do apeadeiro, sempre em frente até desaparecer de vista e do sonho.
Voltou ao banco, ajustou os auriculares e continuo o filme.
Ainda em posição fetal, com o calor a abraçá-la em concha, sorriu. Um fio de lágrimas partiu da estação e seguiu a linha da face até à almoçada.
A vida são dois dias / E se amanhã for feriado / Temos apenas um de trabalho / Depois é para beber / E amanhã morrer
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