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terça-feira, 23 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 23 | Fim da Tarde

Mariana 
Leandro 
Augusto 
Tomar
Fim da tarde


O dux não estava propriamente feliz por ter deixado o rapaz fugir, mas agora os adultos podiam conversar. 
Apenas achava que podiam ter evitado toda aquela cena para ela mudar de ideias, mas... Como era uma pessoa magnânima fez a vontade à Mariana e, com um assobio, os tunos interromperam o ataque. 
Sorriu-lhe um sorriso que pedia um soco nas trombas e convidou-a a começar, mas o estalo que ela lhe pregou vinha com outras intenções. É esse o problema das pessoas com grandes egos, ficam sempre à espera dos yes men e que cultivem as suas terras do eu, eu, eu que quando lhes cospem ficam muito admiradas – e chocadas. 

Os tunos entreolharam-se e hesitaram em avançar, mas o dux desarmou a situação. Estava tudo bem, acalmou-os. 
A mão que esfregou a cara dorida devolveu o carinho que a Mariana recebeu e absorveu à campeã. Também os templários hesitaram, mas ela não precisava que viessem defender a sua honra. 
“Podemos falar quando estiveres mais calma?” Troçou o ex-namorado que parecia que estava numa discussão entre casais e não numa batalha campal. 
“Vá, vá, vamos falar.” 
“Agora que tens voz, tás ca pica toda.” 
Cheirava a, hum, a um engonhanço da parte dela, até porque queria dar tempo ao Diogo de fugir e à polícia para chegar. 
“Não, não, não...” Afastou-se confuso e a falar sozinho. “Já sei, falamos na pensão!” 
“Desculpa?” 
"Tens carro?” 
“Se pensas que me vou enfiar num carro conti-” 
“Vocês os dois” chamou duas caras conhecidas que estavam para ali sentadas.“Pssst!” Chamou-os novamente como se fossem dois canitos para brincar. 
“Conduzem?” Um deles, o Zeca, acenou que sim. O outro, o Mário, não respondeu. Ambas as figuras estavam marcadas, batidas e com olhos negros. Ao contrário dos outros trajados, não estavam muito felizes por estar ali. “Mariana, este moço vai conduzir o teu carro até ao meu hotel. Sabes onde é?” Voltou-se para o Zeca que acenou de novo. “Perfeito. Eu vou lá ter.” 
Tirou a carteira de dentro do casaco e atirou-lhe mais vinte euros. E para a Mariana: 
“Não vais comigo num carro e vamos falar num sítio mais ou menos público. Tenho de orientar aqui as coisas e vou ter contigo.” 
A rapariga esticou o indicador na direcção da cara do Leandro. 
“Não” cortou logo o dux. “O teu amigo safa-se. Nós falamos.” 

Ela estava que nem estátua, congelada no momento com o dedo no ar, a boca contorcida numa reclamação e a vontade engatilhada para o esmurrar de novo. Um acordo é um acordo, remoeu. Negociou consigo e aceitou. Recolheu as armas e marchou pelos caloiros que a seguiram. As engrenagens mentais giravam à volta da ideia que não podia pensar só em si, mas naquela caderneta de cromos que estavam com ela e que dependiam de um bom julgamento: o Diogo que devia estar à coca em algum lugar, o avôzinho, o Augusto e aqueles pseudo templários de part-time. Ah, o amigo do avô que chorava aos céus e segurava o castelo com os braços para não cair. Até mesmo alguns tunos com caras de quem preferiam fazer outra coisa que não fosse comer bordoadas longe de casa. 

Deixou o avô para trás com um até já e para não se preocupar; e o Augusto que estava sentado no chão e contra uma sebe, com uma capa atirada para cima. 
O velho tinha a cabeça para baixo, queixo encostado ao peito e uma mão no pescoço. O sobretudo estava enrodilhado no chão, à distância de um pontapé. Eis uma pessoa que merecia um cigarrito, mas ninguém sem um para oferecer. A Mariana acenou quando saiu, mas o velho quando viu em frente, não estava a olhar para ela, mas para o espaço que ela estava a preencher e para os espíritos que passeavam por ali. 
Junto ao carro, atirou as chaves ao Zeca e entrou no banco de trás. Os três saíram da área do castelo e a parte dela na batalha terminou. 

Não houve vencedores nem vencidos, apenas gente dorida e com sede. Partilhou-se o resto das cervejas e ajudou-se os tunos a carregarem as tralhas para as carrinhas. A Mulher Gorda foi recolhida e o portão foi deficientemente colocado no sítio. Não podiam dizer que não havia fair play e um pedaço de cabeça. 
Quando o líder dos templários ofereceu uma lata ao Augusto, este bebeu-a como se não bebesse água desde que nascera. Engasgou-se e babou-se, mas tinha-lhe caído como ambrósia. 
O Leandro sentou-se junto ao amigo do pai, mas não trocaram palavras. Um rato na cabeça roía-lhe as ideias: manter a promessa e ir-se embora ou ignorar a promessa e apanhar o rapaz? 
O céu vermelho-alaranjado parecia uma réplica de um quadro que compramos nos chineses; uma aldeia ao longe ou um castelo neste caso e figuras esbatidas a passarem na mesma posição eternamente. 
Encostou dois dedos aos lábios e assobiou a dois trajados que correram para o servir. 
“Cinco pessoas, OK? Vejam se alguém viu alguma coisa, mas não se afastem.” 
“Certo!” E espalharam-se para fora do castelo. 
“Porquê?” Coaxou o Augusto. 
Sacudiu o pó da careca. 
“Não ia dormir bem à noite com ele perdido por aí” zombou. 
“Bandalho...” 
O Leandro riu-se. 
“Desculpa o que disse há umas horas...” empunhava outro tom de voz, uma amostra de humildade estranha que lhe assentava como calças de ganga lavadas de fresco. 
Quando se preparou para responder, o velho foi acometido por uma tosse. 
“Eu abandonei o teu pai. O teu pai abandonou-te...” 
Inspirou a custo. Ouvia-se uma pieira ao fundo. 
“Não só a ti. Aos teus irmãos.” 
Falava devagar, cada palavra arrastada a um fôlego cansado. Ao outro custava ouvir do irmão, mesmo sabendo há muito da sua existência. 
“Só tenho o Guilherme” respondeu seco. 
Inspirou. 
“Não. E tens o Jordão...” 
O Leandro cravou a mão direita nas pedras até ao chão e puxou-a para trás, raspando a pele dos dedos. 
O velho sacudiu o braço esquerdo e bufou com um esgar sofrido; depois inspirou bem fundo para preencher todo o vazio do corpo com o ar da noite que nascia em Tomar. Cheirava a pó e à sebe onde estava encostado, e também à história do castelo, onde dezenas de soldados e mouros verteram sangue e lágrimas. A ideia de ficar já ali nem lhe era desagradável de todo, ao menos ia não como soldado, mas num campo de batalha. E a sua vida não havia sido uma batalha? A partir do momento em que se conheceu como Augusto e percebeu que era diferente; ou quando conheceu aquele que viria a ser o seu melhor amigo? Ter alguém ao seu lado era o que mais desejava e enquanto teve, foi invencível. Depois perdeu quando o outro se perdeu. Bateu em retirada, deixou o restaurante e fechou-se. Só em velho é que decidiu retomar a missão, senão por ele, pelos dois. 
“Vamos? Ajuda-me aqui...” Pediu ao rapaz que era a cara chapada do pai e os braços do Leandro à sua volta foram a última coisa que sentiu quando partiu.

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