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domingo, 21 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 21 | Coragem Líquida

Diogo
Mariana
Augusto
Leandro
Tomar
Tarde


“António, o que raio se está a passar?” Perguntou o Zézé aflito. 
"Olha, se queres que te diga, nem sei.” Aproximou-se devagar das grades. Do outro lado, o mar de trajados ondeava de um lado para o outro a murmurar cantilenas. Ninguém apanhava a letra, mas o efeito fazia mesmo lembrar um mar à noite a ganhar as primeiras ondas antes de uma tempestade. 
O Leandro continuava à cabeça do pessoal e sorria com a barra de ferro apoiada no ombro. A Mariana olhava-o de volta, conversavam mentalmente e picavam-se. 
“Vou chamar a polícia!” 
“É melhor...” O Zézé afastou-se a apalpar a roupa. “Diogo, chama o pessoal lá atrás.” 
“O que está a pensar?” O Augusto aproximou-se do outro velho. Apesar da idade, o António era daquelas pessoas que consumia jogos e filmes épicos e, por dentro, ansiava por uma batalha de iguais proporções. A cabeça pensava em nomes para o inimigo, nomes para os bons e estratégias. A vida real era mais simples: bastava ligar à polícia e o Zézé já estava nisso. No entanto, se estalasse a batalha, seriam os corvos contra os templários. Porquê os corvos? Olhem para os trajes e para as capas abertas, não parecem asas da noite? E o que vinham eles fazer se não roubar tempo e paciência. 
Acabou um e tirou outro cigarro. Fumava mais quando estava nervoso e há anos que se enervava tanto, mas aqueles últimos dias puxado por si. Tudo doía: o corpo, a alma, a consciência e nem o tabaco anestesiava. Ainda assim, dava uma passa atrás da outra; aquecia a boca, a língua e expelia imagens do futuro para o ar. Nessas imagens viu parte da muralha do castelo a ceder, a desabar em areia e pó quando a onda quebrou. Não eram boas imagens e acabaram com o cigarro. Só mais dois cigarros. 

O Diogo correu a bracejar na direcção dos templários. Parece que o treino tinha terminado e a fase de hidratação tinha começado. Por outras palavras, acabar com as cervejas na arca. 
Repararam no rapaz que se aproximou e saudaram-no com uma antiga reverência. 
“Salve, jovem!” 
“Precisamos da vossa ajuda!” Bufou o jovem esbaforido. 
“Dizei, dizei!” O Diogo torceu o nariz, mas não teve tempo de ficar confuso e tentou passar a mensagem o melhor que pôde. 
“Viram os tipos que passaram por nós? 
“Esses cavaleiros negros?” 
“Han? Pois, sim. Trancaram-nos no castelo e não nos deixam sair!” 
O que aparentava ser o líder dos templários levantou-se do chão e afastou-se do Diogo para ver melhor o portão. 
“Quem querem eles? 
“A mim... e à minha amiga!” A menção da amiga agitou o grupo que se levantou numa voz de protesto. O líder passou a mão no ar para os acalmar. 
“Já vimos as bestas pela cidade. Por onde passam só fica a miséria” comentou um com voz de oração. 
“Jovem, bebeis connosco?” O líder tirou uma lata da arca e ergueu-a ao Diogo. 
“Agora?” Perguntou incrédulo? Voltou-se para os companheiros ao portão e para os templários; uns acariciam as espadas de madeira e outros despejam latas de cerveja do Lidl garganta abaixo. “Uma.” 
Bebeu-a o mais rápido que pôde e o resto deixou para a roupa. Os outros tipos e reparou em mulheres com elmos, riam-se, mas não dele – com ele. Qualquer desculpa era boa para beber, em tempo de paz ou de guerra. Podia ser a última e só por isso sabia pela vida. A cerveja nem era grande coisa, mas caraças, se não precisava daquela coragem líquida. 
“Outra!” Mão no ar para se abastecer. 
“Irmão, partilhámos álcool... Agora partilhamos destinos!” Acenou para os camaradas para se juntarem. “Treinamos o ano todo para uma batalha a fingir e agora uma bem real bate à nossa porta.” Pousou as mãos nos ombros do Diogo. “Deixa-nos viver a nossa fantasia só por um bocado ou até a bebedeira durar.” 
Os que não estavam armados pegaram nas espadas do chão e arrumaram-nas na bainha. Recuperaram as lanças do chão e enfiaram os escudos nos braços. Depois encaixaram os elmos nas cabeças e formaram três filas de quatro. 
“Toma conta da cerveja!” E ordenou os templários contra o portão que marcharam em canção e álcool. 

O Diogo estava ali, mas não estava. Toda aquela situação deixara de roçar o ridículo para o penetrar com toda a força. A cerveja tinha caído que nem ginja e como encarregue das arcas, serviu-se de outra antes de se apressar atrás dos templários, mas não conseguiu sacudir aquela sensação de ouvir algo conhecido, mas não saber de onde; uma daquelas músicas que todos ouvimos nas festas saloias, mas que ninguém consegue apontar o cantor. Uma música básica, que ficava na cabeça, mas que ofendia a cada verso. E foi por isso que a reconheceu, pela mulher gorda, ai a mim não me convém... 

Eu não quero andar na rua com as banhas de ninguém! Porque se tinha lembrado da música agora?!

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