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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 22 | A Mulher Gorda

Diogo
Mariana
Augusto
Leandro
Tomar
Tarde

Todos ouviram a música. 
De início como a ondulação que quebrava longe da vista; e que se aproximava com a maré. Alguns ouviam-na como um segredo porco e outros como um incêndio prestes a consumir no avanço. A espuma, as fagulhas e as palavras subiam pelos céus de Tomar.
Um fim de tarde anormal e uma legião de tunos às portas do castelo. Alguns expressavam-se em acrobacias e com ri ti tis das pandeiretas que batiam aqui, batiam ali e eram arremessadas às nuvens. Os jovens rodopiavam, apanhavam, ri ti ti pás. Para intimidarem, para se exibirem, untavam as bandeiras e estandartes que chicoteavam e rodavam como moinhos.
Noutro contexto, seria um espectáculo do caraças, mas a violência e a ansiedade das danças e músicas ofereciam outro tipo de actuação.

A música estava mais perto; a Mulher Gorda de versos brejeiros e fáceis apresentou-se quando a maré negra se afastou e dois tunos obesos apareceram em cena.
Um deles carregava um gancho de aço e o outro arrastava uma corrente grossa. O peso não era obstáculo para a dança e para a berraria; abanavam-se e cantavam sem quebrar o ritmo da canção e aproximavam-se das grades do portão.
O Zézé berrou quando prenderam o gancho ao portão e tentou levantar a geringonça, mas os balofos suados riram-se e cantaram mais alto. Um deu sinal para trás e a corrente esticou. Afastaram-se a bailar e a rir e para outro verso.
O portão chiou, fez frente à carrinha que puxava, chiou mais um bocado e moveu-se para fora. Choveu pó, pedritas e o Augusto puxou o Zezé para não ir atrás da grade que abriu com uma lambada na muralha de pedra. A pequena vitória deixou os tunos a uivar de júbilo que cantaram mais alto e aplaudiram como maníacos.
A outra grade arrastou-se um bocadinho para fora como quem dizia que desistia e para não lhe fazerem mal. Um bloco de pedra cai da arcada.
Se não desmaiou, o Zézé estava quase lá. Chorava e berrava pela polícia quando o líder dos templários tomou a iniciativa.
“Já antes tentaram e encontraram a derrota. Esses mouros jamais tomarão o castelo.”
“Mouros?!” Ginchou o Zézé.
“Estava a pensar numa maré negra” interrompeu o Augusto.
“E eu em chamas” completou o avô da Mariana.
“E que tal corvos?” Perguntou o Diogo. “Não se calam e parece que têm asinhas.” A Mariana foi a única que não entrou na nomenclatura dos invasores. Voltou para a porta aberta para procurar o ex-namorado que continuava à cabeça do barulho. Ele ergueu a barra de ferro e marcharam.

Os templários nem perderam tempo - até parecia que já estavam preparados para o maremoto. Formaram uma ferradura na boca do portão; os de baixo foram com um joelho ao chão, escudo ao peito e lança em riste. Os restantes encaixaram atrás, escudos a tapar brechas e lanças apontadas em frente. O líder em frente, em destaque, a incentivar e a levantar a moral aos píncaros da bebedeira e da adrenalina.
“Treinamos para fingir lutar uma vez por ano! Agora é a valer, minha gente!”
E a torrente escoou pelo portão e para dentro do jardim para encontrar outra parede de escudos e varas. A cacofonia da madeira contra madeira, do metal contra madeira rasgou a tarde como foguetes de aldeia.
E com a investida aparada, os templários empurraram os mouros e puxaram das espadas de pau para furarem os invasores à paulada. O Zézé parecia uma formiguita a chorar e a desesperar. A polícia tardava a chegar e os danos, os danos ao castelo!
“Diogo! Sai daqui!” Berrou a Mariana que puxava a capa de um traje enrolada ao braço. O António, fã de jogos e de filmes épicos, estava a curtir a cena à distância, mas não resistiu em atirar um calhau a um dos obesos. Claro que a banha amorteceu o choque e nem ligou ao velho. O Augusto que tinha experiência militar e de vida não tinha na sua agenda esmurrar crianças, mas quando um cotovelo se apresentou ao seu nariz, não teve outra solução se não deitar dois jovens ao chão.
O Diogo ouviu a ordem da Mariana, mas bem ao longe o que foi igual a nada. Levou um murro na cara, tentou dar outro e um templário empurrou-o para o salvar. Ainda fez uma rasteira a um tuno que caiu de focinho ao chão.
Uma mão puxou-o para trás e levantou-o. Agradeceu aflito, mas agradeceu ao Leandro que vinha sem capa, gola desarranjada e sem música nos lábios. Recolhe o braço, com a mão fechada em punho e soca o rapaz na testa. Repete, o Diogo levanta os braços no momento e apara o segundo golpe. Atira-se contra o peito do Leandro que desta vez não cai.
“Baza daqui! Foge” Surge a voz da Mariana e o líder dos templários a sangrar de um olho, mas com a espada entre as duas mãos. Ria e piscava muito rápido para se focar.
“Foge também, moça! Nós damos conta...” bufou, cuspiu gosma de saliva e sangue e sorriu ao vilão. A ser honesto, não sei se davam conta. Apesar de serem movidos a valentia, memórias de batalhas passadas e álcool barato, estavam em desvantagem numérica - e bêbados.
“Leandro, pára com esta merda. Vamos falar?”
“Quero falar com o teu amigo.” Arfava.
“Não, vais falar comigo. Diogo, baza daqui, já!” Pontapeou a terra na direcção do rapaz. “Vai!”
“E tu?” Virou-se para a Mariana. “Que raio vais fazer?!”
“Vamos falar. Só isso. Né, Leandro?”
“F-falar. Uf” Riu. “OK, vamos falar? Depois trato contigo.” Apontou para o Diogo.

E correu. Correu e saltou sobre os corpos tombados, sobre as capas e espadas de madeira; sobre o Zezé que soluçava a um canto. Passou pelo portão e deixou para trás os turistas que se apressavam para longe, curiosos e assustados. Dois tunos apareceram do nada e correu mais, correu na direcção oposta à cidade; desapareceu por entre os carros, chegou à estrada e despistou-os fora dela. Correu mais, correu tanto que quando parou para respirar reparou que estava rodeado do mais absoluto silêncio e da mais cerrada escuridão. Se conseguisse ver um palmo à frente do nariz era muito.
Correu e perdeu-se, mas ao menos fez o que lhe mandaram. Outra vez. Ao longe, apenas uma coruja ousou cantar ao rapaz.

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