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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 18 | Flutuar

Cátia
Lisboa
Almoço

Coisas más acontecem a pessoas boas sem razão aparente; serem violadas, torturadas ou mortas. Quando acontece em ficção, não tem de avançar um enredo ou fazer sentido. As pessoas são más e são. 
Quando os japoneses invadiram Nanquim, não estavam preocupados em desenvolver as narrativas pessoais de cada pessoa morta ou violada. Eram pessoas más, doentes – fodidas da cabeça e do coração - que fizeram coisas más a outros. Nos dias de hoje, o japonês é visto como paciente, educado, rígido e dono de uma paz oriental. Mas... 
As nossas personagens movem-se num tabuleiro de xadrez e o jogo começa a sufocar, portanto sugiro aproveitarmos esta calma antes da tempestade. 

A Cátia mal meteu os pés no Cais do Sodré e arrependeu-se logo. O cais estava mais concorrido do que um queijo da serra ao sol, de uma tarde quente de julho; mais barulho que um jardim de infância em dias de aniversário e não havia um espaço livre sem turistas a arrastarem malas cheias de autocolantes. 
Três terminais e uma confusão sem fim: Montijo – Seixal – Cacilhas. De acordo com o bloco do Augusto, o próximo restaurante ficava para os lados de Almada, então... Cacilhas. Ela já tinha andado de barco entre as ilhas, mas aquela experiência era completamente nova e não tinha a certeza se estava a gostar. 
Demorou meia hora para comprar um bilhete de ida e volta; dois barcos vieram e foram sem ela e a hora de almoço seguia o mesmo trajecto. Quando finalmente meteu os pés num daqueles barcos laranjas, velhos que gemiam e tremiam antes de se afastarem do cais, teve um mau pressentimento. Um arrepio que correu por ela como um gato vadio que não se deixa apanhar: iam parar a meio do Tejo e ficar encurralados entre as duas margens. A única solução era saltar ao rio e nadar – mas para onde? Qual era a melhor margem? Deveria nadar para Cacilhas ou para Lisboa? Seguir a carreira do pai ou a da mãe? Afogar seria uma hipótese? 

A Cátia que parecia a Kate Bush, e que já não dançava há semanas, sentia-se leve no barco que flutuava na espuma do Tejo; a concentração fugia-lhe das fantasias e das responsabilidades e as imagens sumiam-se da vista; pérolas de água nasciam nas rugas confusas e tomavam o seu tempo cara abaixo. Encostou-se ao assento duro do barco e sentiu a agulha a descer ao coração: entrou num piscar e saiu com uma cócega metálica. 
Quando o chão lhe fugiu dos pés, a bailarina reparou que estava a levitar. Não, estava a ser erguida pelos outros bailarinos, e ela era a estrela, o centro das atenções. As cabeças surgiam e desapareciam e cantavam desafinadas, mas o vulto negro ficou e sentiu-lhe a carícia, a mão na face e a separar-lhe os lábios. Depois o líquido quente. E saltou para a vida real. 
“Upa, miúda!” confessou a negra com o copo de café numa mão e a cabeça da Cátia na outra. “Pregaste-me um cagaço...” 
“O que aconteceu?” Perguntou desnorteada quando reparou que já estava fora do barco. 
“Tiveste uma quebra de tensão. Tens comido?” 
“S-sim, mas... “Coçou o vestido por cima do peito. As pessoas passavam para ver e afastavam-se saciadas de acidentes. Aceitou as mãos da outra mulher e acabou com o resto do café. Lavou os lábios com a ponta da língua e a primeira coisa que fez foi pedir desculpas pela chatice. 
“Tens tempo?” Perguntou a outra depois de ter recusado as desculpas. 
“Ia almoçar.” 
“Perfeito, vamos as duas aqui perto.” Levantou-se e esticou-lhe a mão aberta. “Laurinda” apresentou-se. Mão direita para a frente, braço esquerdo apoiado na cintura e atitude para dar e vender qual Pam Grier no seu auge. 
“Cátia” ofereceu de volta e aceitou a mão.

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