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sexta-feira, 19 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 19 | O Discurso da Mariana

Diogo
Mariana
Tomar
Tarde

O carro travou no estacionamento que servia o castelo de Tomar. 
A Mariana conduziu com a concentração de um condutor de competição; pé no pedal, a roçar o limite de velocidade e com as curvas feitas por dentro. O avô estava a vibrar no lugar do co-piloto e o Diogo ferrava no banco de trás. 
Deixaram o carro no parque e fizeram o resto do caminho a pé, em direcçâo à porta dos turistas. 
Ao aproximarem-se do monumento era impossível ficarem indiferentes, com a cintura de pedra a percorrer o cenário e a perder-se de vista, a altura das muralhas fazia lembrar gigantes de gatas, à espera da melhor altura para se erguerem de novo e as torres vazias eram como gargantas secas e gastas que um dia voltariam a incentivar à luta. 
“Conheço as pessoas daqui, vamos por ali” orientou o avô para um guia que passeava à porta. “Zézé!” Saudou-o. 
O velho e as crianças aproximaram-se do homem que escondeu o telemóvel. Cumprimentaram-no e o António apanhou-o num abraço, “olha, tenho de ir buscar a caixa. Há problema?” 
“Zero. Não temos muita gente agora, só o pessoal dos templários a praticar.” À revelação, o Diogo arqueou o sobrolho. A Mariana ignorou, só esperava pelo avanço do avô que seguiu na direcção das orientações do outro. 
“É o pessoal da recriação histórica” explicou-lhes. 
“Hum, hum.” Acenaram e entraram pelo portão de grades altas, para os jardins, e atrelados ao velho que seguia com um assobio no passo. 

Antes de voltar ao telemóvel, o funcionário do castelo reparou num borrão negro no horizonte. A escuridão movia-se como chamas a aproximarem-se do castelo e o som que ouviu parecia o de uma centopeia ampliada a marchar com cem patadas sincronizadas. 

Lá dentro, o grupo de recriação histórica - ou templários - praticava a esgrima medieval; com fatos pesados e espadas de madeira, moviam-se a passo de robô e procuravam acertar no parceiro. Alguns estavam sentados no chão de pedra e bebiam minis de uma arca. Os mais velhos e mais avançados lutavam com mais violência e insultavam-se de acordo com a época. Estes aguentavam bem o peso da armadura e não varriam o ar ao calhas, mas desferiam golpes certeiros no pescoço ou na axila, livrando o inimigo de membros e cabeças imaginárias. 
O Diogo estava perdido na sua cabeça, a aprender uma coisa nova: que havia gente a lutar como templários e ele na cidade. Enquanto isso, a Mariana seguia atrás do avô sem qualquer admiração pelo grupo de teatro. 
Este virou para um canteiro e, por entre os arbustos, velho começou a vasculhar e a afastar os ramos até que houve aquele momento de ah-ah!, quando revelou uma cruz templária em miniatura espetada num montinho. 
“Ora aqui está...” E quando se ia abaixar para cavar, a neta adiantou-se. Como um cão, enfiou as mãos na terra, a atirar punhados para trás até arranhar a madeira. “Eita!” exclamou o avô. 
Tirou a caixa suja e sacudiu-a na direção do Diogo que vinha mais a turistar do que outra coisa, mas quando reparou na caixa saltou para juntos da companheira. 

Eis o momento: a caixa finalmente nas mãos da Mariana. Ao abrir tudo podia acontecer. Ou nada. Podia soltar todas as vozes e os desastres no mundo ou encontrar apenas a esperança à sua espera. Não adianta ficar a adivinhar, mais vale abrir e acabar logo com o suspense. 
Feito. A rapariga abriu a tampa de madeira e pronto, a caixa estava vazia. Acto contínuo, arremessou-a para o chão com um baque na terra. 
“Então, diz algo!” Pediu o Diogo. O avô olhava para a caixa no chão e foi apanhá-la. 
“Repararam que fez barulho ao cair?” Perguntou-lhes. 
“Fez? Não reparei.” 
“Mariana?” 
Esta ergueu os braços para os dois homens se afastarem. Inspirou e expirou com pieira, cada gesto vinha acompanhado de gatinhos a nascerem passados anos. Inspirou e encheu o peito como um balão. Ia explodir. 
“MERDA, CARALHO, FODA-SE, CABRÕES, FILHOS DA PUUUUTA! CONA! CÁGADO! SOBREIRO, PASTEL DE NATAL, SOZINHO EM CASA, PAPEL HIGIÉNICO, ESTERNOCLOIDEOMASTOIDEU OU COMO RAIO SE DIZ PORQUE NÃO FAÇO A PUTA DE IDEIA! UH HOOOOOOOOO!” E acabou-se o fôlego. 
O avô sorriu, riu e dobrou-se numa gargalhada asmática. O Diogo procurava enfiar-se naquele buraco. 

“Mas tu falas?” Chegou uma voz que não era a deles. 

Atrás, um grupo de indivíduos vestidos de negro ocupavam parte do jardim. As capas dobradas sobre os braços e as cabeças erguidas sem expressão; calças negras, camisa branca, homem e mulher. À cabeça do grupo estava um tipo careca, com uma barba que viu melhores sorrisos; todo ele bem vestido, sapatos a piscar o olho ao sol e capa dobrada ao milímetro. 
O Leandro deu um passo em frente, com um Augusto mais gasto logo atrás.

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