Augusto
Leandro
Tomar
Mesmo dia, almoço
A vida é feita de lugares comuns.
Temos as rotinas e uma pessoa sem rotinas é uma planta sem uma cana para crescer direita; perde-se um bocado e fica a anhar a ver a ementa do Cruzado. Durante algum tempo, o Augusto só comia bitoques fora, mas agora com o amigo morto e enterrado e sem o bloco, que estava com a Cátia, não sabia o que comer. Por um lado, a açorda de marisco era sedutora, mas por outro... E se aquele bitoque fosse mesmo o melhor?
O gesto de ignorar a carta parecia um hábito que não lhe pertencia, ainda assim, era difícil de o largar.
O filho do amigo, o Leandro, estava a mexer um jarro de sangria e serviu dois copos, o do Augusto primeiro.
“Fresquinha!” Serviu o velho e depois entornou no seu copo. “Acho que também merecemos depois do trabalho que tivemos.”
“Os teus camaradas não bebem?”
“Ainda não” devolveu sem encarar o velho.
Não havia muita conversa entre os dois; deflectiam o óbvio e a cena do velório era lava. Beberam quase ao mesmo tempo; os sons de sorverem eram ensurdecedores. O Augusto tinha o sobretudo pendurado nas costas da cadeira e o rapaz fez o mesmo com a capa do traje. Chegados a Tomar, foi a primeira coisa que fez; a segunda foi organizar as buscas pela namorada desaparecida – ou assim o dizia.
Quando alguém boceja e ficamos com sono por osmose, também a Cátia contagiou o velho com um bocadinho de empatia. Nada por aí além, mas o suficiente para reparar em fios emocionais que nasciam do Leandro; daqueles fios que não podemos puxar, só queimar. E aproximar lume daquele rapaz era arriscar um incêndio.
“Já falaram?”
“Não.”
“E quem é o amigo?”
“Não faço ideia.”
O empregado passou com o bloco e anotou os pedidos de cada. Carne de porco à portuguesa e um bitoque. Sem vergonhas; era familiar. O Augusto serviu sangria aos dois, tirando fruta para o seu copo.
“Não os vimos ontem, não os vimos de manhã. Se calhar já voltaram para baixo porque isto nem é assim tão grande.”
“Se quiser voltar, pode apanhar o comboio.” Provou um cubo de carne. “Porque veio, Augusto?”
“Achas mesmo que te deixava vir sozinho depois de ontem?” Escavou o arroz e levantou voo até à boca.
“Ontem foi ontem...”
“Ver o meu o corpo do meu melhor amigo em cima do filho... tsc...” Mastigou tanto o arroz como a reflecção.
“Melhor amigo?” Repetiu. “O melhor amigo que desapareceu e deixou o meu pai sozinho. Melhor amigo...” troçou. “Nunca mais vimos aquele homem em casa desde que o melhor amigo o deixou no restaurante.”
Garfada atrás de garfada, carne, batata, carne, batata.
“Sabe, aquele homem – o meu pai – trabalhou até morrer. Diga-me, melhor amigo, se ele não foi enterrado ontem por causa de si.”
“É que eu não te admito!” As duas mãos, em punho e com os talheres presos, aterraram na toalha de papel. Algumas cabeças viraram na direcção da mesa e um dos empregados contornou a mesa por fora.
O velho estava inclinado sobre a mesa para não ter de levantar a voz, o coração a bater mais rápido que uma bateria num concerto de metal e a respiração a fugir-lhe das mãos. Forçou-se a aterrar o corpo na cadeira e colou-se aos olhos do Leandro, do filho do melhor amigo. Quanta verdade haveria ali? O outro não se ria, sorria. E bebia; a mão apoiada na mesa.
Nesse momento, dois trajados irrompem pelo Cruzado e cortam a cena. Um deles aproxima-se ao nível do dux e desce com um joelho ao chão.
“Encontrámos o carro.”
“Perfeito! Onde?”
“Não sabemos de onde veio, mas estamos a segui-lo.”
“Para onde?” perguntou quase sem paciência.
“Para o castelo.”
Acabou o copo de sangria e apontou com o indicador para o jarro. O outro trajado apressou-se a servi-lo, mas só caiu fruta. Tirou uma rodela de limão do copo e encaixou-a entre os lábios, mordendo.
“Interessante” disse quando cuspiu a casca mastigada.
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