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sábado, 13 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 13 | Cruzamento

Augusto
Jordão
Leandro
Cátia

Lisboa
Tarde


O maço enrugado estava no fim.
Tirou de um para fora e prendeu-o nos lábios; arrancou um pauzito da carteira e raspou-o até a cabeça rúbea explodir; aproximou-os para incendiar a ponta e chupou a base.
Que raio se passa com o teu filho, Jorge? Expulsou a nuvem para longe. O estado miserável quando cheguei...

Deu outra passa e mandou o fumo para o ar.
Apanhou o Guilherme e a mãe quando iam almoçar e ficou a saber do outro filho que tinha ficado para trás. Continuou com a Cátia, mas abençoada bexiga cheia que a fez ir a um café. Quando entrou na capela e reparou no morto tombado sobre o filho, quase que lhe partiu o coração. Aproximou-se a medo e parecia que estava a encurralar um animal abusado. Houve lágrimas, raiva e confusão, mas quando arrumar o cenário, houve alívio. Depois o Leandro saiu disparado.
Deixou a ponta do cigarro cair e esmagou-a contra a calçada. Tirou outro de seguida. No outro lado da estrada estava o rapaz que ele conhecia como Jordão, concentrado no prazer do cigarro; também não o via há anos. Estava mais alto que o Leandro e com um cabelão. Os braços tatuados contrastavam com a rigidez do fato passado, como se dois mundos chocassem naquela pessoa: o da ordem e o da rebeldia, sem haver necessidade que um deles ganhasse. Que fará ele da vida?
Uma pessoa vem aos velórios encontrar pessoas e conhecer família nova – e se o rapaz estava ali, a Celeste também.
De facto, estava a conversar com a mãe do Leandro. Elas conheciam-se; sabiam da situação e sobreviviam. Os filhos? Nah, nem sonhavam – ou assim alguns julgavam.

Olhou para o café e para a Cátia com a atenção colada ao telemóvel. Os rabiscos na cara diziam que não estava a ser uma boa conversa. Talvez devesse falar com ela depois... mas não se queria meter na vida da moça, mas deveria? Tinham passado quase vinte e quatro horas juntos, apenas separados pela necessidade de dormir e dois quartos de uma residencial que o Augusto oferecera. Ele já sabia da história dela, das indecisões e da família que lhe bichanava o futuro, pousados nos seus ombros.
E ela sabia da dele, bem, nem tudo. Ele era velho e sabia que certas coisas estavam melhor guardadas. O quê? A razão pela qual ele deixara o restaurante. Contou-lhe que tinham discutido - só. O porquê iria morrer com eles e um já tinha ido.

Com o cigarro preso entre o indicador e o polegar, ia fumando com pausa a adivinhar os filmes das pessoas.
Que mundo pequeno.

Espiou o Leandro à porta com os camaradas de Évora. Eles trajados e o rapaz com o saco na mão. A expressão do filho do amigo estava dura e focada. Não parecia a criança perdida que achara há umas horas com o cadáver do pai em cima. O pessoal fardado e a organização lembraram-lhe dos dias de tropa, onde conheceu o pai do Leandro. Esses é que foram dias; dias de revelações quando o coração saltou uma batida. Mas estavam tão longe que pareciam filmes rebobinados.
Seguimos para Tomar quando estiveres pronto, ouviu um dos trajados. 
"Por mim, vamos agora", devolveu o Leandro que se virou para encontrar o velho.
“Onde vais, rapaz?” Perguntou-lhe.
“Embora.”
“Já viste onde estás? A tua mãe e o teu irmão?”
“Passam bem sem mim.”
“Onde vais?”
“Tomar.”
“O que há em Tomar?”
“Tenho uns assuntos por resolver.” E disparou pelo velho, com os outros a seguirem. Desfez-se do cigarro e acelerou atrás dos jovens. A Cátia, ao telefone, olhou para o Augusto e o rapaz no outro lado da estrada pôs-se a ver a cena.
“Vai depois...” Não quis levantar a voz para atrair ainda mais as atenções, mas os rapazes ignoraram e seguiram na direcção da carrinha que os tinha trazido. Ao todo eram quatro e com o Leandro, cinco. Um deles enfiou-se no lugar do condutor e os outros atrás.
“Augusto, não posso ficar aqui mais tempo.” Aproximou-se ao nível de segredar. “Obrigado pelo que fez por mim, mas deixe-me ir. Agora.” Enrolou as mãos em dois punhos e cravou as unhas nas palmas. Abriu-as, relaxou-as e focou-se.
O velho agarrou-o pelos ombros.
“Duas coisas, rapaz: despede-te da tua mãe e eu vou contigo.”
“Han?”
“Fazemos assim e não arranjamos problemas. Falamos na estrada.”
O Leandro hesitou, esfregou a nuca e ainda tentou contrariar os pés, mas girou no passeio e apressou-se para a mãe que estava sentada com o irmão. A mãe acenou e recebeu um beijo do filho, mas o Guilherme foi mais vocal com a retirada do irmão e dos amigos. E estava a fugir de novo.


“Hum...” Pensou a Cátia a olhar para os rapazes na carrinha. “Acho que fico por aqui, Augusto.”
“’Tá bem” respondeu à rapariga.
“Não sei o que se passa e acho que não me atrai por aí além.”
“Rapariga, nem eu sei” admitiu o velho em seco. “O pai dele matava-me se o deixasse fazer asneiras.”
“Achas que vai?”
Encolheu os ombros.
“Ficamos por aqui então.” A pequena Cátia de vestido e casaco de cabedal por cima, com cabelo a precisar de um bom pente e com uma cara a irradiar dança esticou a mão ao velho fumador de sobretudo, cuja missão era comer o melhor bife com ovo a cavalo e que escrevia poesia gastronómica.
O Augusto encontrou a mão dela e apertou-a gentilmente. Sacudiram a ponte entre si e separaram-nas com um sorriso.
“Sinto-te preocupado e assustado.” Abraçou-o num passo. “Não mintas, mas é o que sinto.” Apertou-o e ele envolveu-a no seu abraço de velho, a fraquejar. Suspirou uma resposta que era melhor do que mentir.
Separaram-se novamente e ele foi ao bolso onde estava o bloco.
“Toma.”
Os olhos saltaram da capa para o Augusto.
“Certeza?”
“Aceita, vá.” Ela recolheu-o nos braços.
“Dividimos: eu continuo a comer e tu a escrever. Quero-o de volta, ouviste?”
“Missão aceite! Cuidado com o sal, Augusto.”

O Leandro entrou para o lado do condutor e velho para a segunda fila. Pouco depois, o carro desapareceu da rua e ela, pela parte que lhe tocava, também sumiu.
Uns minutos mais tarde, a Celeste emergiu da capela e esperou pelo braço do filho que a levou dali para fora, daquele lugar de despedidas – algumas para sempre...

Paga depois de beber / Não saias daqui a correr / E se vives do alimento / Não me tires o sustento

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