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sexta-feira, 12 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 12 | Eco

Leandro
Lisboa
Tarde

Estar num velório é como tirar uma fotografia e não saber o que fazer aos braços. É estranho. Estamos lá, mas não sabemos bem o que fazer: se choramos, se rimos, se consolamos ou sei lá.... É tudo tão alienígena e falso, então o choro.... Disseram-me há tempos que as carpideiras eram mulheres contratadas para chorarem em velórios e funerais e para ajudar, não, para guiar as pessoas pelos seus sentimentos. Ninguém faz o luto da mesma maneira nem há um manual universal de como sentir... 
Agora que penso nisto, são prostitutas da tristeza que, por uma quantia combinada, fazem-nos sentir alguma coisa... 

“Vamos almoçar agora, vens?” Perguntou o Guilherme ao irmão, quase a sussurrar. Duas criaturas tão diferentes que podiam ser de famílias separadas. O mais velho, alto e careca com A barba ignorada. O mais novo, gordinho, mas bem arranjado para a ocasião. 
“Vão andando. Quero ficar uma beca sozinho” respondeu o Leandro a abrir as cadeiras de plástico. O irmão passou-lhe a mão pelas costas e afastou-se. Fechou a porta da capela atrás de si. 
O Guilherme era mais novo quatro anos e estava no primeiro ano da faculdade. Como ficou por Lisboa viveu o declínio do pai de uma maneira mais presente; viu-o a ficar doente; as pessoas que o vinham visitar, a morrer. Foi ele a ligar ao irmão. Era ele a apoiar a mãe. O Leandro estava em Évora e, embora quisesse estar com eles, sentia-se aliviado por não ter assistido àquele espectáculo. 

Estava sozinho, mas sentia uma espécie de presença na sala, alguém sentado no fundo. Aquela sensação de entrarmos em algum lado e sentirmos a televisão ligada, mas a mãe e o irmão tinham ido almoçar e o resto só chegava de tarde. 
Ele e o pai enfiado numa caixa de madeira aberta pela metade. Apenas alguns passos até surgir a cara do homem. Parecia que só estava a dormir com o sorriso dele desenhado na cara. Enrolou a mão numa bola. Não era difícil fazer aquele homem sorrir, principalmente se não forem da família. 
Mas estava bem arranjado no seu fato. A genética agraciou ambos aqueles homens com falta de cabelo, mas deu-lhes barbas fortes. Se não fossem as rugas da idade ou o nome na porta, podiam trocar de lugar. 
Recuou e sentou-se. Os passos a ecoar na sala vazia. 

A mala e o saco do traje estavam na cadeira ao lado. Mais tarde, o pessoal dele iria chegar para ajudar. Tirou do telemóvel e fez a mesma chamada pela enésima vez, com o ecrã ao nível da cara. Tocou e tocou e nada. Ligou para o segundo número, de onde falou uma senhora. 
“Olá, Francisca. Como está?” Encostou o telemóvel à boca e quase a sussurrar. 
Oh, filho, bem e tu? 
“Nada a apontar. Por acaso sabe da Mariana? Não consigo falar com ela.” 
Olha, saiu daqui há umas horas. 
“Sabe para onde?” 
Para Tomar. Foi com um amigo. 
“Muito obrigado, depois tento falar com ela.” 

Desligou a chamada e ficou a marinar naquilo. Tomar. Amigo. Bateu com o telemóvel no assento da cadeira, mas o som que produziu não foi o de um objecto a bater. Alguém que o chamou. Talvez não tivesse desligado a chamada e a dona Francisca o tivesse chamado. Ou um efeito estranho do eco. 

Leandro. 

Saltou cadeira. Percorreu as cadeiras, e ninguém tinha entrado. A única janela estava fechada... Talvez a sua cadeira que arrastou? Ele não estava maluco. Caminhou para o caixão. 
“Ohh, sim” zombou. “Só faltava ao morto falar-lar-lar.” As últimas sílabas flutuaram da boca pela sala vazia. “Não falavas vivo e ias agora começar-ar-ar?”  
O pai continuava com a mesma expressão, com aquele sorriso que agora parecia-lhe de gozo. 
“Eras um egoísta de merda-da-da. Davas tudo ao mundo, mas cagavas em casa-sa-sa. Esperámos sempre por ti-ti-ti. Para jantar, para o fim-de-semana, para as férias, para termos uma vida-da-da. E agora bazas-zas-zas!” 
Pôs-se a andar de trás e para a frente, a esfregar a careca durante o solilóquio. A cavar um buraco na sala. 
“Também eras assim para a outra família-ia-ia?” 
“Oh, desculpa... Não era para saber-er-er?” E travou em frente ao caixão. “Deviam falar mais baixo em casa-sa-sa!” O pai continuava a sorrir. O filho corria por várias emoções sem conseguir agarrar uma. 
“O Leandro está perturbado-do-do. O Leandro tem dificuldades em controlar as suas emoções-ões-ões. O Leandro precisa de acompanhamento psicológico-co-co!” Agarra nas costas de uma cadeira. 
“O Leandro precisa é que o pai não ande a foder por aí-í-í!” Berrou. E puxou da cadeira contra a do lado, atirando mais duas ao chão. 

O peito do rapaz descia e subia cada vez mais rápido; a respiração custava-lhe, parecia um peixe a morrer em terra; a adrenalina corria-lhe pelas veias e controlava-o como uma marioneta; e os olhos do rapaz bem abertos tentavam focar coisas para além daquele plano material. O morto ria-se dele. 
“Sabes o que seria engraçado-do-do? Se viessem hoje-je-je. Adorava conhecer o meu irmão-mão-mão...” Gotas de granizo escorriam-lhe pela testa como se o coração se estivesse a preparar para parar. Plantou-se firme no chão de tijoleira.  

Voltou-se para a porta. Continuava fechada. 
“Vai-te lá embora-ra-ra. Eu tomo conta da MINHA família-ia-ia. Xau-au-au.” 
E quando se aproximou para se despedir, o pai tinha as mãos sobre a barriga, com os olhos fechados e perdidos numa gargalhada. 
“Filho da puta-ta-ta!” E a perna saltou do chão contra a lateral do caixão que sacudiu no suporte – e tombou, com metade do corpo do pai a escorrer pela abertura. 
O eco da pancada varreu a sala e uma onda de pânico afogou-o. Correu para o morto e tentou levantar o caixão. O pai virou-se para a frente e escorregou contra o peito do filho. Frio! E a cara estava húmida, a escorrer involuntariamente. E o rapaz soluçava compulsivamente e os urros de qualquer coisa dentro dele não o deixaram ouvir os passos lá fora ou a maçaneta a girar. 

Era demasiado tarde. Demasiado tarde para conversarem. Demasiado tarde para um pai ajudar o filho, mas de uma maneira retorcida e irónica, finalmente teve aquele abraço que sempre procurou e nunca teve. 

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