Diogo
Mariana
Seixal
Dia seguinte - Início da tarde
Uma pessoa mora na Margem Sul e pensa que até é fácil visitar as outras cidades. Ir do Montijo ao Seixal? Ou a Almada? Nah. Ter um autocarro para o Barreiro já é uma sorte! Então, para ir ter com a Mariana ao Seixal, o Diogo apanhou um autocarro até ao barco, o barco até Lisboa e outro barco para trás.
Depois era apanhar boleia. O carro já o esperava, com uma Mariana de cabelo húmido, óculos escuros a esconderem a cara, jeans e a t-shirt certa dos The National. Assim que o descobriu na multidão, acenou uma vez e sentou-se. Ele entrou e largaram dali.
O rádio estava ligado ao telemóvel dela, agora com bateria, e tocava a banda da t-shirt. Tocava a Abel, ouviram em silêncio e ela sacudia a cabeça ao sabor da letra. Acabou, ele tentou enfiar alguma conversa pelo meio, mas sem sucesso. Ouviram o resto das músicas, com ele a olhar lá para fora, até chegarem durante a quarta. Pararam junto a uma vivenda de três andares, à beira da estrada. Havia prédios no outro lado da estrada e toda uma civilização, mas aqui – neste lado, havia só a vivenda branca. Nada na porta ou nas janelas, um Citroen Berlingo parado e uma caixa de correio grande. A Mariana deixou o carro junto ao Berlingo e atirou a porta com força, sem produzir qualquer ruido. Já a porta do Diogo fechou normalmente.
Deve ser a casa da avó, pensou. Ou um lar. Tirou das chaves que não tilintaram e enfiou-as na pequena ranhura, mas em vez de as rodar, a porta foi puxada para dentro para revelar uma negra alta, cabelo penteado numa poumpadour, bela, com um olhar fulminante na direcção do rapaz. Vestia uma daquelas batas que as senhoras usam nas limpezas ou para espreitarem à janela. Sugou a Mariana num abraço mimoso, mas sem tirar os olhos do Diogo.
“Mari! E tu deves ser o Leandro?” Perguntou a mulher que se apresentou como Bonna. Bonna Fide. Nome artístico, nome real: Laurinda.
“Diogo.” Corrigiu.
“Entrem, entrem.”
A Mariana deu corda aos sapatos e deixou-os para trás.
“Alto.” A Bonna barrou a entrada ao Diogo. “Controla as mãos e esses olhinhos." Chamou a Mariana: “Contaste-lhe alguma coisa?” Esta sacudiu a cabeça e desapareceu para a cozinha.
“Óptimo. Bem-vindo ao centro de estudos da avó Quicas. Estudamos e trabalhamos durante o dia e... Estudamos e trabalhamos durante a noite.” Piscou-lhe um olho. De facto, quando desviou a atenção daquele mulherão de voz forte, reparou noutras quatro pessoas na sala. Três mulheres e um homem: uma loirinha que não parecia ser portuguesa escrevia num caderno e os restantes estavam espalhados nos sofás com as caras enfiadas em livros. Até agora, a história batia certo. Seguiu a Bonna até à cozinha, cruzando-se com os residentes e se havia algo em comum é que eram espécimes lindos! Tanto eles como elas.
Na cozinha, a Mariana discutia com uma senhora bonacheirona, encostada à bancada. Deduziu que discutiam pela violência das mãos, pela velocidade com que alternavam os símbolos da linguagem gestual e pela dureza do olhar.
Quando o rapaz entrou com a Bonna, a senhora disparou com os olhos.
“Tu! Nem sei quem és, mas andas a meter-lhe macacos na cabeça e depois dá nisto!” E ele estava tão parvo que nem sabia onde se havia de esconder, senão atrás da Bonna. A Mariana veio rapidamente ao resgate dele, dizendo coisas que ele não conseguia ler. Era possível que a Bonna entendesse, mas não parecia preocupada, só em matar a sede.
A senhora suspirou, abrandou e, mais calma, apresentou-se: era a Dona Francisca, mais conhecida por Quicas. A voz continuava zangada, mas recolheu as armas e voltou à bancada, e à panela ao lume. Em cima estava uma placa de madeira, cenouras cortadas e outros legumes à espera. Continuou a cortar e a despejar na panela. Repetia quando enchia a tábua. O cheiro a refugado estava a dar-lhe uma fome...
A Mariana sentou-se e fez sinal ao Diogo para se juntar.
“O que disseram?” Perguntou.
“Perguntou quem conduzia o outro carro.” Quem respondeu foi a Bonna.
“OK?”
“Vai resolver alguma coisa? Trazer os pais dela de volta? A minha filha de volta?” Desta vez foi a Dona Francisca que raspava os restos da tábua para dentro da panela. Baixou o lume e tapou-a.
“Pode ajudá-la a recuperar a voz” alvitrou. “Ou a ter paz.”
“Ela não perdeu a voz. Perdeu todo o som” corrigiu a avó. A Bonna levou o copo de água para junto da Mariana,
“Nem um pio.” Comentou e passou-lhe o copo que pousou na mesa sem se ouvir na madeira.
“Então? E quem foi?” O Diogo olhava de uma mulher para a outra.
“Mas o que te interessa a ti?” A senhora levantou a voz.
“Porque eu fui arrastado pela sua neta muda!” Oh, como as pernas lhe tremiam e como o tentava esconder. “E porque sei o que é ter a cabeça tão desfeita. Hoje não fala, e amanhã?” A Mariana fitou-o.
"E ela não precisava de mim para isto.” Refugiou-se no copo de água. “Só que a ideia já estava na cabeça há muito tempo. Não entendo, que mal tem? Se não ajudar, amanhã é outro dia. Se ajudar, óptimo!” Puxou-se da água para a senhora.
As mãos da Mariana disseram qualquer coisa que a avó respondeu. Foram gestos lentos e suaves, a avó encerrou os olhos como se estivesse a pensar.
“Então? Quem era o outro condutor?” A Quicas suspirou, regressou à panela, mexeu com a colher de pau e deitou água lá para dentro com um caldo. Voltou a tapar e estudou a parede. Também ela usava a típica bata que parecia grande de mais para ela.
“Não houve outro condutor” confessou. “Desculpa, filha.” A neta olhou-a com holofotes em vez de olhos. “Estavam a vir de um jantar e tinham bebido. O teu pai adormeceu a conduzir e bateram contra um poste.”
E aquela informação - aquele plot twist, ou reviravolta, apenas era novidade para os que estavam sentados à mesa. A avó, com as mãos no bolso da bata, tinha aberto a sua caixa de Pandora. A Bonna resgatou o copo da mesa e acabou com ele, num canto da cozinha. Mesmo com o lume aceso, o ambiente tinha congelado.
“Não o culpo, filha. Tinham bebido os dois e podia ser a minha Maria a conduzir. Irresponsáveis!, sim, mas não podia viver com – com este rancor dentro de mim. Já basta o que te fiz...”
A Bonna ainda lá estava. De certa maneira cúmplice da avó e a coluna para a senhora se aguentar.
“Ai, nossa Senhora. Perdoa-me, mas ele implorou-me segredo, Mariana.”
Ele... A senhora que agora parecia mais velha engoliu um balde de ar e a Bonna aproximou-se dela, dando-lhe o braço para uma força extra.
“Ele não morreu. Foi preso. Saiu... A última vez que falámos, estava a viver em Tomar.”
Rapariga e rapaz. Ambos mudos à mesa. Sabem aquele tinido que temos depois dos concertos? Era tudo o que ouviam, mas em vez de um tiiii irritante, ouviam o exaustor. Esteve sempre ligado sequer?, mas lá estava ele a trabalhar, a sugar os fantasmas da panela – e da sala.
Sem comentários:
Enviar um comentário