Cátia
Augusto
Entroncamento
Noite
O Augusto quis descer no Entroncamento para espreitar um restaurante perto da estação. A Cátia espreitou os horários da CP e decidiu acompanhar o velho na sua jornada pelo melhor bitoque. Houve tempo, de Nelas ao Entroncamento, para deixá-la ao corrente da missão. Ela ponderou um bocado e comentou que parecia um daqueles filmes de domingo, que vemos enrolados no outono, com uma chávena fumegante. E ele não sabia se tinha sido um elogio ou um insulto...
Às tantas, a miúda já estava a sugerir bons tascos na Terceira. Era bem possível que o épico passasse por lá, e mais sítios para comer e ler poesia gastronómica não matavam.
“Já provaste alcatra?” Sugeriu.
“Claro! Divinal!” respondeu satisfeito.
Durante a viagem, quando pensou mais um bocadito, reparou que o enredo tinha alguns plot holes, ou lacunas, disse-lhe. Ele estava a fazer aquilo pelo amigo, sim; que estava a falecer, certo; não faria sentido estar com ele nos últimos momentos e - depois - continuar? É complicado. Como? Foi uma promessa. Ela insistiu, mas a boca dele não cedia.
E assim acabaram no Entroncamento, quase nas primeiras horas do jantar que o Augusto gostava de comer cedo para desmoer. A rapariga não levantou objecções.
Mas alguns locais partilhavam da mesma ideia de comer cedo e o Bandulho já estava a encher. O empregado separou uma mesa para os dois, esticou uma toalha de papel, deixou os pratos e os talheres. Voltou com as entradas e deixou a carta. A Cátia também recusou a dela, queria o mesmo que o “pai”. E uma imperial. O “pai” ficou-se por uma água das pedras. Se a vida é um palco, aqueles os dois desempenhavam os papéis de pai e de filha, ideia dela, atenção. O velho suspirou, mas sorriu por dentro.
“Vou fumar.” Levantou-se e deslizou para o fresco. Ela ficou tamborilou a mesa e entreteve-se a acompanhar as notícias, a bebericar a cerveja. Parece que apanharam o vigilante que andava a matar os padres novos. E era o maluco da aldeia! Das poucas coisas que reteve, foi a braguilha aberta quando o enfiaram no carro. Coitado.
A comida aterrou na mesa e o Augusto ainda na rua. Tentou espreitá-lo, mas não o viu pela janela. Havia um corredor de fumadores a tapar a vista e nenhum era ele. Devia estar a confraternizar à volta do cigarrito e a mandar a sua passa. Não era algo que lhe despertasse grande interesse, mas também não queria que a comida arrefecesse.
Lá apareceu à porta, com as mãos enfiadas no sobretudo e a flutuar por entre as mesas como um fantasma. Sentou-se em silêncio e afunilou a vista no prato.
“Está tudo bem?” Arriscou.
O está tudo bem da Cátia evaporou-se e como continuou a ser ignorada, também se meteu a comer. Levantava os olhos para o observar, mas a cara do velho estava escondida, com medo que a comida sumisse se deixasse de olhar.
Passados minutos, as palavras isto está uma porcaria foram as primeiras desde que voltara da rua. “Deixaram passar o bispo pelo arroz, não bateram bem a carne e não deixaram o ovo estrelar.”
“Augusto, o que se passa?” E não estava a falar da comida. Quer dizer, a boca dele estava, mas na sua cabeça estava a resmungar de outra coisa.
“Nada. Come, pequena.”
“Não estás bem.”
“Não te preocupes.”
Podia parar. Não o fez. Investiu.
“Augusto. Augusto. Pai. Pai. Pai. Sabes que tenho um poder? Consigo sentir o que as pessoas sentem e topar quando me mentem. E tu, papá, tens as mãos amarelas.”
O velho grunhiu...
O empregado pairou pela mesa para saber se estava tudo bem. O Augusto nem respondeu, mas a filha acenou um sorriso. Alguém não ia receber a gorjeta.
“Augusto, sabes o que é a empatia?”
“O que é a empatia, filha?
“OK, estás a ver esta sala cheia de homens?” O homem olhou em volta e constatou o facto. “Se berrasse agora olhavam todos para cá.”
“Não o faças.”
“Calma. Depois fazia esta experiência: chegava ao pé de ti e dava-te um valente chuto nos tomates.
“Não o faças...”
“Calma! Tu irias cair redondo nesse chão e todos os homens na sala também iriam sentir o chuto nos seus tomates. É uma transmissão de sensações ou emoções!” Afastou as mãos da cabeça num gesto de explosão.
“Queres experimentar? Sou muito boa nisto!”
“Não obrigado, já me basta a sola da carne.”
“Então conta-me.”
Bufou, “Ligaram-me de Lisboa.” Ela pousou os talheres. “O meu amigo morreu esta tarde.”
“Que vais fazer?” Disse meio a tremer, mas a enrijecer por dentro.
“Vou jantar. Vou para Lisboa e amanhã vou ao velório.”
“Vou contigo.”
“Cátia...”
“Homessa, decidi e está decidido. Vamos acabar de comer esta poia e apanhar o comboio.” E ele sabia que não ia vencer aquilo. Na verdade, ele agradecia a companhia, o teatro e alguém que o ouvisse.
Abraçaram o silêncio da confusão do restaurante e continuaram a lutar com a carne. Se havia algo bom naquele quadro eram os picles. E, antes de saírem, ela rematou com um doce da casa e ele um café com cheiro, enquanto anotava no bloquinho:
Não sejas rezingão /E mostra gratidão / Ao amigo que vem com dois copos na mão
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