Jordão
Lisboa
Noite
Uf, que dia!
O Dragão Lusitano saiu do estúdio com um andar novo e com um sorriso tatuado na cara. Ah, outro cliente satisfeito!, e só passou as próximas horas a esfregar as mãos e a ouvir piadas de piroca dos colegas. Uma coisa era certa, fez ali um senhor dinheiro que o ia aguentar durante os dias de chuva.
Mais tarde, ele e o Rafa fecharam o estúdio e o dia. Agora era casa e preparar os esboços para amanhã. Ah, e responder às mil e uma perguntas nas redes sociais. Só ia descansar quando as pálpebras batessem.
Ao contrário do sardão erecto do Dragão Lusitano, o destino é sinuoso e com reviravoltas para os mortais. Tanto que quando chegou a casa, a mãe Celeste ainda estava sentada à mesa. Pequena, mirrada; e ela não era muito grande, nem muito gorda nem muito magra, mas tinha corpo por causa do trabalho físico, mas ali parecia uma sombra negra perdida num mundo que não era dela.
O filho entrou na cozinha e cumprimentou-a com um beijo na cabeça. Tirou uma tigela do armário, por cima do fogão, e entornou cereais lá para dentro. Depois o leite quase gelado. O jantar da mãe também fora franciscano: dois carapaus e pão ensopado em azeite. Para empurrar, o resto de gasosa de marca branca.
“Como foi o teu dia?” Perguntou à mãe que encolheu os ombros.
“Foi.” Suspirou. “Estás bem, filho?”
“Tive um sócio no estúdio que quis um dragão na pila e isso foi o ponto alto do meu dia.”
“Bem parecia...” fungou o ar, “que cheirava a qualquer coisa” Riram-se.
O filho sentou-se e levou a colher à boca. Ela olhava para ele e ele para o fundo da tigela enquanto mastigava, ele os cereais e ela algo por dizer.
“O teu pai morreu.” Só aquilo. Uma chicotada. O crunch crunch crunch era a única resposta do Jordão. Mergulhou outra colher no leite e enfiou-a na boca.
Crunch crunch crunch.
Tic toc tic toc, o relógio da vizinha, no outro lado da parede fina, também quis participar.
Ele ainda demorou a levantar o olhar. Em parte, como desafio e porque queria encontrar algo simpático para dizer à mãe. O rapaz era muito da mãe, mas tinha traços do outro homem. E ela estava a encontrá-lo nele. O feitio de arame farpado era todo dele, mas aquele cabelão era da família dela; forte e o da mãe que já vira melhores outonos... Agora mantinha a carapinha curta para não ter muito trabalho e para não estorvar, mas quanto tinha a idade do filho? Ui. Afinal, fora o cabelo que a metera em sarilhos.
Crunch, clinque, clinque.
“Amanhã é o velório e quero que venhas comigo.” Não era um pedido.
Terminou o jantar e levantou o prato para a bancada. Abriu a torneira e pôs-se a lavar a louça sem uma reposta. A Celeste era paciente e sabia da tempestade que se formava atrás dos olhos do filho. Arrancou um pedaço de pão e esfregou-o num resto de azeite. Primeiro encostou-o aos lábios, depois atirou-o para dentro.
“Jordão.”
“Celeste.”
"Fala comigo, filho.”
“Não vai dar para ir. Estou com imenso trabalho. Sorry.” E ele ouviu o som de dois punhos a aterrar na toalha de plástico.
“Não repito. Há tempo para ires beber. Há tempo para a tua mãe.”
“Olha, pois prefiro beber do que vê-lo a fazer de tijolo!” O primeiro relâmpago rasgou a cozinha.
“Perdeste o cabeça, rapaz?!” Pontuou com uma chapada na madeira “É que Deus me ajude se não te ajudo a encontrá-la! Eu não me matei a trabalhar para a criar um filho para este me sair um ingrato! Ensinei-te melhor do que isso!”
“Estás sempre, sempre a dizer isso!” devolveu o outro.
“Porque tenho de te lembrar com quem estás a falar!”
Desligou a torneira.
Tic toc tic toc.
Um deles demorou-se a respirar, mas ninguém quis ser o primeiro a falar.
Ele não era parvo, sabia que estava errado. Não devia picar o urso. Devia era pegar nos comentários de merda, empacotar e metê-los no correio. E não atirá-los à mãe. Porreiro, não curtia do homem, mas isso não lhe dava o direito de cagar no que a mãe sentia. Deu a volta à mesa e desceu à altura dela.
“Desculpa.” Deu-lhe a testa. Não era - não devia estar a ser fácil para ela. E o que sentia? E a tempestade da senhora? Os olhos brilhavam como se chovesse no outro lado. Beijou-a de volta.
“Não te vou deixar sozinha com aquela gente.”
Ela acenou e fungou, mas recompôs-se logo com o sorriso da Celeste. Apenas uma lágrima escapou bochecha abaixo e morreu no canto do lábio.
“Tenho de trabalhar. Ficas bem?” Procurou-a.
“Vai, filho.”
Esticou-se e saiu para a sala. A mãe lá ficou sozinha.
A luz da cozinha era daquelas amarelas e fracas que fazia um trabalho mediano a iluminar as coisas, mas a Celeste irradiava a sua própria luz. A tempestade chegou a terra: trovejou e choveu torrencialmente, mas só uma vez. O outro homem não merecia mais.
“Lava as mãos antes de mexeres nas coisas!” Gritou do canto dela.
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