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quarta-feira, 31 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 31 | Exposição


(…) O velho desceu na estação de Nelas às cinco para as treze. Estava agasalhado com um sobretudo de lã castanho; uma camisola térmica de desporto branca e umas calças de bombazina beges por baixo. Sessenta e seis anos não é bem velho, mas é a caminhar para lá e... (…) 

“Corta!” Pediu a mulher a espreitar por detrás da câmara. “Pessoal, dez minutos! Tu não saias daí.” 
A realizadora que outrora teve a cara da Kate Bush, cresceu para uma da sua idade. Naquele dia, usava o cabelo preso em rabo de cavalo, enfiado para trás num boné sem marca; um colete verde com muitos bolsos e umas calças de ganga. Correu para o actor na plataforma, com um rolo de papel entre as duas mãos. 
“Ei, tuuu” agrediu-o com o rolo. “Quando desceres, olha para nós. Queremos filmar essa cara e o cigarro.” 
“Sim, senhora, chefe.” O actor virou-se. “E de resto?” 
“Tudo nos trinques. Dás um bom Augusto.” Sorriu. 
“Estou-te a ver.” enfiou as mãos nos bolsos. “Porra, está frio!”

E olharam-se e sorriram que nem tolos para disfarçarem a tensão e a ânsia. O resto da equipa estava espalhada a fumar e a comer, conversavam ou ligavam para longe. Nem por acaso, um zumbido de um zangão invisível voou entre o casal e a produtora enfiou as mãos no colete. Encostou o telemóvel ao ouvido e atendeu com um sorriso rasgado: 
“Mariana!” 

Sempre uma alegria, miúda. Como estás? 
“Cheia de trabalho, mas bem. E por aí?” 
Não me posso queixar. Tenho sempre a casa cheia. 
Pausa para alguém falar atrás. 
Olha, vão sexta? 
“Não perdíamos por nada... Dez anos! 
Olha essa exposição, senhora realizadora. E vê lá, que ainda nos vimos no ano passado. 
“Eu sei, mas já passaram dez anos desde que nos conhecemos.” 
Passou a voar. Olha, e como está o Diogo? 
“Está aqui ao lado e diz olá.” Virou-se para ele a acenar. “Acabamos de filmar por aqui e seguimos para baixo.” 
Uma rajada sacudiu-os e a Mariana virou-se para se meter a favor do vento. 
Já pensaste no final? 
Aham! Vai ser, tipo, uma homenagem aos filmes dos anos oitenta com aqueles separadores e o que eles fizeram.” 
Nós fizemos! 
Riram. 
“Ah e tal, a Mariana ficou com o negócio da avó e iniciou uma carreira na política para lutar pelos direitos dos seus protegidos. O Diogo não conseguiu convencer o patrão sobre onde esteve, continua no mesmo escritório, mas dá uma perna como actor; o Jordão pediu um empréstimo com o Guilherme e restauraram o restaurante; o Augusto foi espalhado num apeadeiro; o Leandro foi diagnosticado com perturbação da personalidade e livrou-se da prisão, mas teve umas temporadas internado até desaparecer e eu estou aqui, a falar contigo, no meio das minhas filmagens.” 
Moça, calma! Estive lá. 
Até o Diogo se riu atrás. 
“Estou a pensar nisso ou no Augusto a narrar, que achas?” 
Surpreendam-me. 
Ouviu-se um clique na linha. 
Encontraste o teu bitoque? 
Nope... E acho que não vou. Sabes...” trocou o telemóvel de ouvido. O Diogo afastou-se para ir à net no seu. “... Acho que não existe isso de bitoque perfeito. Vivemos esta vida à procura de coisas, de... De um sentido. Ou de uma voz, de protagonismo, de bitoques ou de uma decisão e é isso que nos faz acordar todos os dias. Depois há aqueles que acham que têm tudo e perdem-se em si.” 
Estou a ver. Estou... 
“É muito bom termos uma missão. Ei! Isto deu-me uma ideia para a moral do filme. Hum... Tenho de ver se funciona.” 
Ainda não tinhas? 
“Tinha, mas... Sempre aberta a sugestões! Mariana, vamos filmar. Falamos logo?” 
Logo. 
“Beijo à tua avó e à Bonna.” 
Serão dados! Ao Diogo também. 
A Mariana desligou o telemóvel do lado dela. 
“Vá, vamos continuar antes que percamos a luz. Gente, aos lugares!” 
Ela aproximou-se do Diogo e pôs as mãos nos braços do homem vestido de Augusto. Gentilmente, colocou-o em cima da cruz marcada no chão. 
“Não te esqueças: vira-te para nós.” 
“Apetece-me beijar-te quando ficas assim tão business.” 
“Não aqui, tolo!” Corou. “Logo?” 
“Combinado” Sorriu-lhe e tentou piscar o olho, falhando. 
“Parvo.” 
A realizadora afastou-se, deixando o Diogo, actor, na plataforma a ensaiar os movimentos e as falas em silêncio. 
A equipa apagou os cigarros, deitou fora os pacotes de sumo e as pratas das sandes e retomaram os seus lugares. 
A Cátia espreitou pela câmara centrada no Diogo e levantou-se, focando-o numa moldura com as mãos. 
“OK, assim mesmo...” Olhou em volta e quando viu que todos estavam prontos, começou: 

Luzes... Câmara... Acção! 

(…) O velho desceu na estação de Nelas às cinco para as treze. Estava agasalhado com um sobretudo de lã castanho; uma camisola térmica de desporto branca e umas calças de bombazina beges por baixo. Sessenta e seis anos não é bem velho, mas é a caminhar para lá e as trincheiras na cara davam-lhe ainda mais idade. E o tabaco. E a bebida. (…)

terça-feira, 30 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 30 | Estrondo


Diogo
Mariana
Jordão
Augusto
Cátia
Leandro

Lisboa
Noite


Uma breve cortina de chuva e vidro varreu a praça e sumiu. 
Via-se o fumo e os corvos a afastarem-se, a tropeçarem como se alcoolizados, a sacudir o silvo que não vinha do exterior, mas que ecoava dentro dos crânios. Uma rapariga de casaco de cabedal falso, cabelo espalhado como uma estrela do mar, estava em posição fetal e abraçava um frasco; um fio de sangue seguia por uma ruga até ao chão. 
As línguas das labaredas lambiam os beiços das janelas partidas, e reflectiam na pele negra do rapaz que usava o corpo como escudo para proteger outro. À frente, um miúdo andava aos ziguezagues, mãos nos ouvidos até se sentar ali mesmo no chão. 
As cabeças curiosas brotavam dos veios que abriam na praça e a rapariga corria para elas a adejar os braços; ali perto, o amigo estendia os braços aos que tinham caído e puxava-os para longe. 
Momentos depois, os roncos de motores e os guinchos das sirenes interromperam a noite e expulsaram a escuridão com os laranjas intermitentes. 

Sabem quando metemos o alarme para uma sesta, e no sonho ficamos à espera que toque a qualquer momento e não conseguimos descansar? Era isso que o Jordão sentia, enquanto desenhava na toalha de papel e o irmão cozinhava. Desenhava um dragão enrolado a um braço; daí até chegar ao Dragão Lusitano foi um salto. Deixou escapar uma risadinha que atraiu os olhos do Guilherme. O rapaz mordia os lábios de preocupado e olhava pela janela e para a festa lá fora. 
O Leandro continuava em frente ao fogão, avental ao peito e a conversar sozinho, a confirmar medidas e a receita. Duas chávenas de arroz – quatro de água. Certo! E ria, mas depois voltava aos momentos de silêncio concentrado. 
Que farra. E não podiam fugir. Se tentassem, seriam logo apanhados e recambiados para dentro. Até agora, ninguém tinha recorrido à violência, mas enquanto houvesse álcool tudo podia acontecer. 
O Jordão recebeu os olhares do Guilherme, canalizou-os pelo braço e continuou a desenhar para manter a cabeça ocupada. Ele sabia... ele sabia que não se devia ter metido com aquela família, e se não o tivessem procurado continuava bem. Carregou o traço de caneta e passou aos detalhes do dragão. 

Leandro foi à mesa com dois pratos e voltou ao fogão sem quebrar a melodia em assobio. 
“Vá, comam! Comam!” Convidou-os. Os pratos, uma porção de arroz, bife, ovo a cavalo e batata estavam bem decorados, divididos e coloridos – pareciam uma paleta com as cores ainda frescas. Ele estava a preparar o seu prato quando o Guilherme atacou a refeição. O Jordão empurrou o prato e continuou no seu happy place, distante e à espera que a palhaçada acabasse para ir para casa, mas o relógio tardava em tocar. 

A folia lá fora e o arraial baixaram de volume drasticamente. O Guilherme parou com o garfo no ar, levando-o depois em câmara lenta à boca; o Jordão espiou o Leandro a dirigir-se a uma janela e começou a deslizar da cadeira. O irmão ainda lhe deitou um braço que sacudiu como se fosse um mosquito. A música aumentou ligeiramente quando a porta da entrada abriu e três pessoas entraram: a ex-namorada, o amigo da ex-namorada e uma miudita cuja cara não lhe era estranha. 
“Mariana!” Abriu os braços para os receber. “E amigo da Mariana. Tu não sei. Mas venham que há para todos.” Apontou para a mesa, o Guilherme com as bochechas cheias e o Jordão meio sentado e levantado. 
“Espera, tu não estavas desaparecido?” Franziu os olhos para o Diogo. “Ah, caga nisso. Têm fome?” Correu ao frigorífico de onde tirou mais carne para a bancada, polvilhou com sal, virou e repetiu. 
“A especialidade da casa: el bitoqué. Gostam?” De novo a assobiar. A Mariana e o Diogo olhavam para o Leandro e partilhavam o mesmo fio de pensamento: os jerricãs. De um lado para o outro, o cozinheiro tinha de dançar à volta dos contentores. Eles não sabiam o que tinham, mas se fosse algo perigoso, bastava uma distracção para... para! 
A Cátia olhava em volta à procura do Augusto, mas só havia três lugares à mesa para os irmãos. Uma vozinha na cabeça pedia-lhe para parar; que ela sabia que não ia encontrar ali. Pelo menos, não da forma que ela esperava. 
“Leandro, pára com isto. Vamos falar?” 
“Sobre?” Perguntou o ex-namorado. 
“Disto! Já viste o estado do restaurante? Da rua? A porcaria que estás a fazer? E vocês aí sentados?” Apontou para os irmãos. 
“Não me metas nisso, miúda!” O Jordão levantou-se. “Eu nem devia estar aqui!” Apontou a faca de serrilha ao irmão e decidiu-se a sair. 
“Quieto, maninho” ordenou o Leandro. “Não acabámos o jantar de família e agora somos mais.” Atirou com a carne para a chapa quente, ouvindo-se o chiar do metal quente. 
“Tens razão, Mariana. Isto está uma confusão do caralho.” Inspirou e empurrou o ar para si. “Eu e o pai decidimos começar do zero: mandar tudo abaixo e reconstruir. Dar uma cara nova ao restaurante, estás a ver? Ele queria deixar tudo, mas eu e o Augusto convencemos o velho a manter a casa.” Apontou para o frasco, para a tristeza da Cátia. 
O Diogo sentiu algo a borbulhar no fundo do seu ser. 
“O que tens aí aos pés?” A Mariana perguntou dos jerricãs. 
“Isto? É para queimar o restaurante” disse com total normalidade. Virou a carne e juntou mais canecas de arroz. 
“És uma besta!” 
“Não é preciso ofender, querida...” Sorriu carinhosamente. 

Caraças que o alarme não tocava. 
O Jordão saltou da cadeira preparado para sair, mas um berro do cozinheiro fez com que a porta fosse barrada de capas negras. 
“Deixa-me sair, meu” avisou o Jordão já sem paciência. 
“Papar, vá.” 
O Diogo reconheceu o que estava a acontecer dentro de si. Aquela poça primordial e o seu reflexo nela. A ansiedade de nadar para cima e nunca atingir a superfície. A mão estava dura como pedra e um dedo fechou depois do outro. 
Não há problema em sermos personagens secundárias. O mundo também precisa de pessoas que segurem o escadoterecordou-se, mas até o Sam carregou o Anel e quando não o carregou, carregou com o Frodo. A mão era um punho que era um calhau que apanhou no chão. E porque o Leandro estava distraído com o outro rapaz, as pernas do Diogo adiantaram-se à iniciativa de agir. Primeiro, aproximou-se do fogão; segundo, o braço veio atrás; terceiro, disparou um soco contra a face esquerda do Leandro, todos os nós dos dedos a embater antes do resto do punho, a rasparem o nariz e a furarem o ar em frente. O Leandro rodopiou no lugar, foi contra a frigideira da carne que virou para o chão, óleo e carne, e segurou-se na bancada, a arfar como um animal ferido. Massajou a cara até sentir aquela dor quente e húmida do sangue. Cuspiu com umas tentativas de riso à mistura; o riso a tornar-se mais forçado e longo e demente. 
“Eles obrigaram-me a isto. Vocês viram!” Empurrou-se do fogão e caminhou ao bengaleiro, passando pelo Diogo, Mariana e Jordão. Os olhos postos nele. Agarrou no casaco comprido do traje e apalpou pelos bolsos, de onde tirou uma caixinha pequenina. Voltou para o lugar a bater com os pés no chão, a marchar amuado e com uma cara de traquina. 
O Leandro, de olhos arregalados, esfregou a careca e apoiou o queixo na palma da mão para analisar a cena. Olhou para os vivos na sala e para os mortos na sua cabeça, os lábios metralhavam em silêncio. Mais ninguém se mexeu, tirando o Jordão que chegou à porta e empurrou um dos trajados. Foi empurrado para dentro e quando puxou um deles, a confusão foi restaurada com o Jordão a tentar-se livrar de dois tipos. 
Todos olharam e agiram, mas o Leandro aproveitou o flash de distração e tirou a caixa do bolso; da caixa tirou um fósforo de madeira; raspou-o e quando a cabeleira rúbea do fósforo ganhou fogo, deixou-o cair no óleo que pegou logo. 
A chama cresceu até ao tecto antes que pudessem cobri-la. Dos panos às capas nas paredes, à porcaria espalhada no chão, foi um instante. Quem reparou nos jerricãs fugiu a sete pés, deixando o Diogo, a Mariana, o Jordão, a Cátia, o Augusto e os irmãos Leandro e Guilherme lá dentro. Sem pensar, a Cátia correu para o Augusto e o Diogo atirou-lhe os braços para apanhar o ar; o Jordão voltou para o Guilherme que já saltava porta fora; a Mariana hesitou sem saber se puxava o Diogo ou a Cátia. Viu as chamas à volta dos jerricãs e correu para a rua. A Cátia roubou o frasco da bancada, foi puxada pelo Diogo e tropeçaram para a rua. 
“Foda-se” berrou o Jordão na porta quando viu o irmão estátua no meio das chamas. Que sensação estranha acordar sem irmãos há uma semana e agora correr para salvar um que era a puta de uma besta. Um passo para dentro, seguido logo por outro, e as chamas cresciam. Apanhou o avental, empurrou-o para fora, correu, empurrou-o de novo, passaram a ombreira e uma almofada a ferver catapultou-os para a rua, onde caíram na calçada. Por instinto, o Jordão arrastou-se para cima do Leandro e choveu... 

… uma breve cortina de chuva e vidro varreu a praça e sumiu.


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