(…) O velho desceu na estação de Nelas às
cinco para as treze. Estava agasalhado com um sobretudo de lã castanho; uma
camisola térmica de desporto branca e umas calças de bombazina beges por baixo.
Sessenta e seis anos não é bem velho, mas é a caminhar para lá e... (…)
“Corta!” Pediu a mulher a espreitar por detrás
da câmara. “Pessoal, dez minutos! Tu não saias daí.”
A realizadora que outrora teve a cara da Kate Bush, cresceu para uma da sua idade.
Naquele dia, usava o cabelo preso em rabo de cavalo, enfiado para trás num boné
sem marca; um colete verde com muitos bolsos e umas calças de ganga. Correu
para o actor na plataforma, com um rolo de papel
entre as duas mãos.
“Ei, tuuu” agrediu-o com o rolo. “Quando desceres, olha
para nós. Queremos filmar essa cara e o cigarro.”
“Sim, senhora, chefe.” O actor virou-se. “E de resto?”
“Tudo nos trinques. Dás um bom Augusto.”
Sorriu.
“Estou-te a ver.” enfiou as mãos nos bolsos.
“Porra, está frio!”
E olharam-se e sorriram que nem tolos
para disfarçarem a tensão e a ânsia. O resto da equipa estava espalhada a fumar e a comer, conversavam ou ligavam para longe. Nem por acaso, um
zumbido de um zangão invisível voou entre o casal e a produtora enfiou as mãos
no colete. Encostou o telemóvel ao ouvido e atendeu com um sorriso rasgado:
“Mariana!”
Sempre uma alegria, miúda. Como estás?
“Cheia de trabalho, mas bem. E por aí?”
Não me posso queixar. Tenho sempre a casa
cheia.
Pausa para alguém falar atrás.
Olha, vão sexta?
“Não perdíamos por nada... Dez anos!”
Olha essa exposição, senhora realizadora. E vê
lá, que ainda nos vimos no ano passado.
“Eu sei, mas já passaram dez anos desde que
nos conhecemos.”
Passou a voar. Olha, e como está o Diogo?
“Está aqui ao lado e diz olá.” Virou-se para
ele a acenar. “Acabamos de filmar por aqui e seguimos para baixo.”
Uma rajada sacudiu-os e a Mariana virou-se
para se meter a favor do vento.
Já pensaste no final?
“Aham! Vai ser, tipo, uma homenagem aos filmes dos
anos oitenta com aqueles separadores e o que eles fizeram.”
Nós fizemos!
Riram.
“Ah e tal, a Mariana ficou com o negócio da
avó e iniciou uma carreira na política para lutar pelos direitos dos seus
protegidos. O Diogo não conseguiu convencer o patrão sobre onde esteve, continua no mesmo escritório, mas dá uma perna como actor; o Jordão pediu um empréstimo com o Guilherme
e restauraram o restaurante; o Augusto foi espalhado num apeadeiro; o Leandro
foi diagnosticado com perturbação da personalidade e livrou-se da
prisão, mas teve umas temporadas internado até desaparecer e eu estou aqui, a falar
contigo, no meio das minhas filmagens.”
Moça, calma! Estive lá.
Até o Diogo se riu atrás.
“Estou a pensar nisso ou no Augusto a narrar,
que achas?”
Surpreendam-me.
Ouviu-se um clique na linha.
Encontraste o teu bitoque?
“Nope... E acho que não vou. Sabes...” trocou o
telemóvel de ouvido. O Diogo afastou-se para ir à net no seu. “... Acho que não
existe isso de bitoque perfeito. Vivemos esta vida à procura de coisas, de... De um sentido. Ou de uma voz, de protagonismo, de
bitoques ou de uma decisão e é isso que nos faz acordar todos os dias. Depois
há aqueles que acham que têm tudo e perdem-se em si.”
Estou a ver. Estou...
“É muito bom termos uma missão. Ei! Isto
deu-me uma ideia para a moral do filme. Hum... Tenho de ver se funciona.”
Ainda não tinhas?
“Tinha, mas... Sempre aberta a sugestões!
Mariana, vamos filmar. Falamos logo?”
Logo.
“Beijo à tua avó e à Bonna.”
Serão dados! Ao Diogo também.
A Mariana desligou o telemóvel do lado dela.
“Vá, vamos continuar antes que percamos a luz.
Gente, aos lugares!”
Ela aproximou-se do Diogo e pôs as mãos nos
braços do homem vestido de Augusto. Gentilmente, colocou-o em cima da cruz
marcada no chão.
“Não te esqueças: vira-te para nós.”
“Apetece-me beijar-te quando ficas assim tão business.”
“Não aqui, tolo!” Corou. “Logo?”
“Combinado” Sorriu-lhe e tentou piscar o olho,
falhando.
“Parvo.”
A realizadora afastou-se, deixando o Diogo, actor, na plataforma a ensaiar os movimentos e as
falas em silêncio.
A equipa apagou os cigarros, deitou fora os
pacotes de sumo e as pratas das sandes e retomaram os seus lugares.
A Cátia espreitou pela câmara centrada no
Diogo e levantou-se, focando-o numa moldura com as mãos.
“OK, assim mesmo...” Olhou em volta e quando
viu que todos estavam prontos, começou:
Luzes... Câmara... Acção!
(…) O velho desceu na estação de Nelas às
cinco para as treze. Estava agasalhado com um sobretudo de lã castanho; uma
camisola térmica de desporto branca e umas calças de bombazina beges por baixo.
Sessenta e seis anos não é bem velho, mas é a caminhar para lá e as trincheiras
na cara davam-lhe ainda mais idade. E o tabaco. E a bebida. (…)
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