Diogo
Mariana
Jordão
Augusto
Cátia
Leandro
Lisboa
Noite
Via-se o fumo e os corvos a afastarem-se, a
tropeçarem como se alcoolizados, a sacudir o silvo que não vinha do exterior,
mas que ecoava dentro dos crânios. Uma rapariga de casaco de cabedal falso,
cabelo espalhado como uma estrela do mar, estava em posição fetal e abraçava um
frasco; um fio de sangue seguia por uma ruga até ao chão.
As línguas das labaredas lambiam os beiços das
janelas partidas, e reflectiam na pele negra do rapaz que usava o corpo
como escudo para proteger outro. À frente, um miúdo andava aos ziguezagues,
mãos nos ouvidos até se sentar ali mesmo no chão.
As cabeças curiosas brotavam dos veios que
abriam na praça e a rapariga corria para elas a adejar os braços; ali perto, o
amigo estendia os braços aos que tinham caído e puxava-os para longe.
Momentos depois, os roncos de motores e os
guinchos das sirenes interromperam a noite e expulsaram a escuridão com os
laranjas intermitentes.
Sabem quando metemos o alarme para uma sesta,
e no sonho ficamos à espera que toque a qualquer momento e não conseguimos
descansar? Era isso que o Jordão sentia, enquanto desenhava na toalha de papel
e o irmão cozinhava. Desenhava um dragão enrolado a um braço; daí até chegar ao
Dragão Lusitano foi um salto. Deixou escapar uma risadinha que atraiu os olhos do
Guilherme. O rapaz mordia os lábios de preocupado e olhava pela janela e para a
festa lá fora.
O Leandro continuava em frente ao fogão,
avental ao peito e a conversar sozinho, a confirmar medidas e a receita. Duas chávenas de arroz – quatro de água. Certo! E ria, mas depois voltava aos momentos de silêncio concentrado.
Que farra. E não podiam fugir. Se tentassem,
seriam logo apanhados e recambiados para dentro. Até agora, ninguém tinha
recorrido à violência, mas enquanto houvesse álcool tudo podia acontecer.
O Jordão recebeu os olhares do Guilherme,
canalizou-os pelo braço e continuou a desenhar para manter a cabeça ocupada.
Ele sabia... ele sabia que não se devia ter metido com aquela família, e se não
o tivessem procurado continuava bem. Carregou o traço de caneta e passou
aos detalhes do dragão.
O Leandro foi à mesa com dois pratos e voltou ao fogão sem quebrar a
melodia em assobio.
“Vá, comam! Comam!” Convidou-os. Os pratos,
uma porção de arroz, bife, ovo a cavalo e batata estavam bem decorados,
divididos e coloridos – pareciam uma paleta com as cores ainda frescas. Ele
estava a preparar o seu prato quando o Guilherme atacou a refeição. O Jordão
empurrou o prato e continuou no seu happy place, distante e à espera que a palhaçada acabasse
para ir para casa, mas o relógio tardava em tocar.
A folia lá fora e o arraial baixaram de volume
drasticamente. O Guilherme parou com o garfo no ar, levando-o depois em câmara
lenta à boca; o Jordão espiou o Leandro a dirigir-se a uma janela e começou a
deslizar da cadeira. O irmão ainda lhe deitou um braço que sacudiu como se
fosse um mosquito. A música aumentou ligeiramente quando a porta da entrada
abriu e três pessoas entraram: a ex-namorada, o amigo da ex-namorada e uma
miudita cuja cara não lhe era estranha.
“Mariana!” Abriu os braços para os receber. “E
amigo da Mariana. Tu não sei. Mas venham que há para todos.” Apontou para
a mesa, o Guilherme com as bochechas cheias e o Jordão meio sentado e levantado.
“Espera, tu não estavas desaparecido?” Franziu
os olhos para o Diogo. “Ah, caga nisso. Têm fome?” Correu ao frigorífico de
onde tirou mais carne para a bancada, polvilhou com sal, virou e repetiu.
“A especialidade da casa: el bitoqué. Gostam?” De novo a assobiar. A Mariana e o
Diogo olhavam para o Leandro e partilhavam o mesmo fio de pensamento: os
jerricãs. De um lado para o outro, o cozinheiro tinha de dançar à volta dos
contentores. Eles não sabiam o que tinham, mas se fosse algo perigoso, bastava
uma distracção para... para!
A Cátia olhava em volta à procura do Augusto,
mas só havia três lugares à mesa para os irmãos. Uma vozinha na cabeça
pedia-lhe para parar; que ela sabia que não ia encontrar ali. Pelo menos, não
da forma que ela esperava.
“Leandro, pára com isto. Vamos falar?”
“Sobre?” Perguntou o ex-namorado.
“Disto! Já viste o estado do restaurante? Da
rua? A porcaria que estás a fazer? E vocês aí sentados?” Apontou para os irmãos.
“Não me metas nisso, miúda!” O Jordão
levantou-se. “Eu nem devia estar aqui!” Apontou a faca de serrilha ao irmão e
decidiu-se a sair.
“Quieto, maninho” ordenou o Leandro. “Não acabámos o jantar de família e agora somos mais.” Atirou com a
carne para a chapa quente, ouvindo-se o chiar do metal quente.
“Tens razão, Mariana. Isto está uma confusão do
caralho.” Inspirou e empurrou o ar para si. “Eu e o pai decidimos começar do
zero: mandar tudo abaixo e reconstruir. Dar uma cara nova ao restaurante, estás
a ver? Ele queria deixar tudo, mas eu e o Augusto convencemos o velho a manter a casa.” Apontou para o frasco,
para a tristeza da Cátia.
O Diogo sentiu algo a borbulhar no fundo do
seu ser.
“O que tens aí aos pés?” A Mariana perguntou
dos jerricãs.
“Isto? É para queimar o restaurante” disse com
total normalidade. Virou a carne e juntou mais canecas de arroz.
“És uma besta!”
“Não é preciso ofender, querida...” Sorriu
carinhosamente.
Caraças que o alarme não tocava.
O Jordão saltou da cadeira preparado para
sair, mas um berro do cozinheiro fez com que a porta fosse barrada de capas
negras.
“Deixa-me sair, meu” avisou o Jordão já sem
paciência.
“Papar, vá.”
O Diogo reconheceu o que estava a acontecer
dentro de si. Aquela poça primordial e o seu reflexo nela. A ansiedade de nadar
para cima e nunca atingir a superfície. A mão estava dura como pedra e um dedo
fechou depois do outro.
Não há problema em sermos personagens secundárias. O mundo também
precisa de pessoas que segurem o escadote, recordou-se, mas até o Sam carregou o Anel e
quando não o carregou, carregou com o Frodo. A mão era um punho que era um calhau que
apanhou no chão. E porque o Leandro estava distraído com o outro rapaz, as
pernas do Diogo adiantaram-se à iniciativa de agir. Primeiro, aproximou-se do fogão; segundo, o braço
veio atrás; terceiro, disparou um soco contra a face esquerda do Leandro, todos
os nós dos dedos a embater antes do resto do punho, a rasparem o nariz e a
furarem o ar em frente. O Leandro rodopiou no lugar, foi contra a frigideira da
carne que virou para o chão, óleo e carne, e segurou-se na bancada, a arfar
como um animal ferido. Massajou a cara até sentir aquela dor quente e húmida do
sangue. Cuspiu com umas tentativas de riso à mistura; o riso a tornar-se mais
forçado e longo e demente.
“Eles obrigaram-me a isto. Vocês viram!” Empurrou-se do fogão e caminhou ao bengaleiro, passando
pelo Diogo, Mariana e Jordão. Os olhos postos nele. Agarrou no casaco comprido
do traje e apalpou pelos bolsos, de onde tirou uma caixinha pequenina. Voltou
para o lugar a bater com os pés no chão, a marchar amuado e com uma cara de
traquina.
O Leandro, de olhos arregalados, esfregou a
careca e apoiou o queixo na palma da mão para analisar a cena. Olhou para os
vivos na sala e para os mortos na sua cabeça, os lábios metralhavam em silêncio. Mais ninguém se mexeu, tirando o Jordão que chegou à porta e empurrou um dos trajados.
Foi empurrado para dentro e quando puxou um deles, a confusão foi restaurada
com o Jordão a tentar-se livrar de dois tipos.
Todos olharam e agiram, mas o Leandro
aproveitou o flash de distração e tirou a caixa do bolso; da caixa tirou um
fósforo de madeira; raspou-o e quando a cabeleira rúbea do fósforo ganhou fogo,
deixou-o cair no óleo que pegou logo.
A chama cresceu até ao tecto antes que pudessem cobri-la. Dos panos
às capas nas paredes, à porcaria espalhada no chão, foi um instante. Quem
reparou nos jerricãs fugiu a sete pés, deixando o Diogo, a Mariana, o Jordão, a
Cátia, o Augusto e os irmãos Leandro e Guilherme lá dentro. Sem pensar, a Cátia
correu para o Augusto e o Diogo atirou-lhe os braços para apanhar o ar; o
Jordão voltou para o Guilherme que já saltava porta fora; a Mariana hesitou sem
saber se puxava o Diogo ou a Cátia. Viu as chamas à volta dos jerricãs e correu
para a rua. A Cátia roubou o frasco da bancada, foi puxada pelo Diogo e tropeçaram para a
rua.
“Foda-se” berrou o Jordão na porta quando viu
o irmão estátua no meio das chamas. Que sensação estranha acordar sem irmãos há
uma semana e agora correr para salvar um que era a puta de uma besta. Um passo
para dentro, seguido logo por outro, e as chamas cresciam. Apanhou o avental,
empurrou-o para fora, correu, empurrou-o de novo, passaram a ombreira e uma
almofada a ferver catapultou-os para a rua, onde caíram na calçada. Por
instinto, o Jordão arrastou-se para cima do Leandro e choveu...
… uma breve cortina de chuva e vidro varreu a praça e sumiu.
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