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segunda-feira, 8 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 8 | Itálicos

Mariana
Lisboa
Noite - Manhã (dia seguinte)

Classificação do condutor? Cinco estrelas. Entrou mudo, saiu calado; rádio na M80 e carro limpinho. 
Classificação da Mariana? Mal educada e abusadora. 
Classificação do Diogo? Um conas sem qualquer autoridade que se se deixou arrastar. 

Quis levantar a voz no Cais, mas não queria as atenções indesejadas. Oh, ela era boa. Andou para trás e para a frente – quando podia ir embora, mas enfrentou-a quando encheu um balde de coragem. Pôs-se de cócoras, ao nível da cara da miúda, e perguntou-lhe para onde ia; se não tinha ninguém para a buscar: pais, amigos, namorado (esta última era uma armadilha).
Negou tudo e escreveu que mesmo que tivesse quem a fosse buscar, não os podia chamar. Estava sem bateria? Hello? Oh, ela era mesmo boa. Resignou-se e sentou-se ao lado, a ponderar ir-se embora ou ficar. 
O único terminal a funcionar era o que ia para Cacilhas. Havia quem chegasse para a noite e poucos que fugiam para o dormitório. Os restantes terminais, para o Montijo e para o Seixal, já estavam às escuras, à espera das primeiras partidas da manhã. 

Para todos os efeitos, a miúda da t-shirt dos Joy Division estava sozinha, ou dizia estar. Ele, ou se punha a andar para a casa do amigo ou fazia serão. Como boa personagem de suporte que aspirava ser, ficou. 
Entraram à socapa para um dos terminais escuros e abancaram contra uma máquina de snacks, longe do movimento e protegidos dos outros. Aproveitaram esse momento para cochichar, quer dizer, ele fez o cochicho e ela ouviu. Ela teclou. Também já estava pronta para a rajada de perguntas sobre a voz. Se há algo que toda a gente gosta é tragédia de puxar à lágrima. 
A verdade era – a mesma resposta era: nem ela sabia. Os pais morreram num acidente de carro e a voz uns tempos depois. Agora, ela não era médica nem terapeuta da fala ou da cabeça, então não podia mandar bitaites. E os especialistas dessas áreas também coçavam a cabeça. Não foi só a voz que sumiu, mas todos os sons que ela emitia. Desde o simples espirro bocejo, passando por um arroto ou assobio. Alguém pegou num comando e silenciou a Mariana. 

"Tens família próxima? Quem tomou conta de ti? Quem é que sabe mais do acidente?"
Perguntou o curioso ao lado. E todas as as respostas iam dar a uma pessoa: à avó Quicas. Se aconteceu na Margem Sul, então ela sabia. A avó Quicas foi a primeira a chegar ao hospital e a última a sair. Tratou de tudo e não deixou a neta mexer uma palha. 
"Talvez...," arriscou, "talvez tenha sido esse o problema?" Completou. "Se calhar ajudava-te a processar e a lidar com o trauma."
O assunto já tinha sido abordado em várias sessões. A dor é processada de maneira diferente pelas pessoas: há aquelas que se focam no trabalho e há as que desaparecem em quartos escuros como aquela sala do Cais. Não choram. Não falam. Puf. Somem. Limitam-se a existir no fundo das fotografias. 

"E a tua avó? O que ela faz? E o que ela sabe?"
Oh, a avó Quicas. Havia muito para escrever sobre a avó Quicas, mas ainda não era para os olhos dele, mas... Ela sabia muito, e por alguma razão, a senhora não gostava de falar do assunto. Perder uma filha não era pêra-doce. 

"Mas tu estás no teu direito!" Hum. 
"Vão continuar a viver sem tocar no assunto?" Se for preciso. 
"Já visitaste a campa deles?" Não! Se há algo que não faço é a romaria ao mármore. Morreram. Foram enterrados. Fim. 
"Fim?! Se fosse comigo, estava apenas a começar." Como? 
"A tua avó deve-te uma conversa. E se não der em nada. O condutor do outro carro." Hum... 
"Se for caso de apontar dedos, não há melhor pessoa. Sabem quem foi?" A avó Quicas sabe. 
"Vamos falar com ela." Vamos? 
"Vamos." E disse que podias meter-te na minha vida? 
"Miúda, tu puxaste-me literalmente para a tua vida. Eu conheço-me e conheço-me nos outros. Estás trancada." Népia. 
"Tens a certeza?"

Apenas o Tejo contra o pontão metálico que guinchava a cada movimento. 


Não. 
"Escreve aqui a morada da tua avó. Amanhã vamos para casa, dormimos, comemos e vamos conversar. Diz que a ideia foi minha. OK?" Desculpa... 
"Então?" Não quero fazer isto! 
"De novo, tens a certeza?" Sim. 
"Está bem..."

Ficaram na sua. Ele ligou a consola, tirou o som, reduziu a luz do ecrã e retomou o jogo guardado. As pequenas personagens coloridas viviam vidas pixelizadas. Tinham as suas narrativas, mas não a iniciativa de as seguir. Os conceitos de Deus, predestinação, moralidade, acção e reacção eram todos falsos. Quando morriam, voltavam à vida em segundos e quando venciam as suas estatísticas aumentavam. Na vida real, as pessoas podiam puxar as outras para dentro de Ubers e desculparem-se com a bateria, mas as pessoas também pode falhar a qualquer momento. Liderar cansa quando não se tem um bom suporte. Aquele Samwise. 

Diogo? Pausou o jogo. Deixa-me pensar melhor. 

Adormeceu pouco depois até ao primeiro barco. Ele jogou mais um bocado e desligou. Separaram-se e só aterraram nas suas camas.

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