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segunda-feira, 29 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 29 | Refugado


Cátia 
Mariana 
Diogo 
Seixal 
Fim da tarde 

Ainda faltava algum tempo para o jantar na casa da avó Quicas, mas a senhora já estava atarefada e de um lado para o outro. A Cátia saiu do telefone e juntou-se à Francisca. 
"Sabes como se faz?” Perguntou com os punhos na cintura, sem desviar a atenção do fogão. “Cobres o fundo do tacho com azeite; botas-lhe cebola picada em cima e mexes, mexes com o lume baixo."  
Quicas raspou com a colher de pau no fundo metálico e baixou o bico. Ouvia-se aquele estalar simpático da cebola em azeite e o aroma de uma refeição em pensamento. O fumo subia da boca do tacho para cheirarem e sumia no exaustor. 
"É a olho, quando vires que está bom, atiras com o frango lá para dentro e mexes tudo. Depois o sal, tens ali umas ervas e mais ajustando o sabor.” 
Tampou o tacho, só com uma nesga para a água não subir. 
"Vais conhecer a minha neta daqui a pouco" anunciou a avó, mas a cabeça da Cátia ainda estava nas Ilhas e com os pais. Quando lhes contou da sua decisão ficaram aborrecidos primeiro com ela - silêncio, depois entre si. 
Quiseram saber se estava bem, mas tudo o que se passou desde a quebra de tensão à estadia numa casa de alterne foi respondido com um tá tudo bem. E até mentir sobre isso lhe pesava. 
A matriarca olhou para a moça e procurou-lhe a cara. 
“Já vi esses olhos na cara de todos os que vieram para cá. Que se passa filha?” 
“Sinto que estou a desiludir os meus pais, Francisca.” 
“Filha, se eu fizesse o que os meus pais queriam, era costureira. Olha para mim!” Abriu os braços para incluir toda a cozinha e a casa para lá dela. “Não me safei?” 
A Cátia sorriu e riu. A senhora voltou ao lume, mexeu e volto a encaixar a tampa. Enfiou as mãos no bolso do avental e procurou uma história com moral 
“As pessoas fogem para aqui e eu não faço perguntas.” Pausou e mediu as palavras. “Quem vive e trabalha debaixo deste telhado faz parte da minha família e ninguém se mete com a Quicas.” Pegou na colher de pau e ameaçou porrada ao ar. 
“Depois há quem faça disto vida ou trabalhe para pagar o estudos e depois voam do ninho. E tu, filha, já sabes que estás à vontade.” Sorriu, mas um sorriso maternal e não insidioso ou desconfortável. Ela queria mesmo dizer aquilo sem segundas intenções: a intenção era de caras. 
A Cátia recusou educadamente, que já sabia o que fazer. A Quicas deixou escapar uma gargalhada que foi sugada pelo exaustor. 
“Fazes bem, isto não é vida!” Continuou, mas lembrou-se de algo que lhe entrou sorrateiramente nas memórias. Sacudiu a cabeça, os cabelos grisalhos e trancou-se num sorriso. 

Pouco tempo depois, o carro que tinha arrancado da casa da Quicas há uma semana e picos voltou a estacionar junto à Berlingo. As duas mulheres ouviram a campainha, cada uma ansiosa à sua maneira, e ouviram a Bonna a fazer a festa. A neta e o amigo surgiram à porta, com a Bonna Fide atrás, a sorrir como um papagaio de papel a voar alto. 
Também a velha reconheceu os olhos daqueles dois, os olhos de quem tinha encontrado as suas vozes. Na sua cabeça, tinha recebido a neta com um abraço lambuzado, mas a vergonha e a penitência do segredo ainda perduravam. Limitou-se a sorrir e a saudar a neta; depois o rapaz que esteve desaparecido durante dias. À porta, os olhos dos curiosos acendiam-se aos pares. 
O estômago do Diogo contorceu-se ao ver o tacho enorme ao lume. Passou uma semana a comer comida do campo, mas quando era feita por ele, a magia era falsa e a imagem da tampa a vibrar no tacho deixava-o nervoso. Foi então que reparou na Cátia e como a sua cara não lhe era estranha. 
“O jantar está quase” A avó quebrou o gelo. 
“Desculpa avó, mas temos de sair.” A voz dela! Há quanto tempo não a ouvia? Um dedo mindinho de lágrimas subiu-lhe aos olhos que ignorou a resposta da neta. 
“Onde?” Perguntou a Bonna. 
“O Guilherme ligou-me quando estávamos a chegar. O Leandro está a destruir o restaurante do pai e tem o irmão preso.” 
“O Guilherme?” Perguntou a avó já na realidade. 
“Não, imagina: tem outro irmão! Sabias disso?” 
A avó encolheu os ombros e fez uma careta. 
“E que tens a ver com isso, filha?” 
“Nada, mas sinto que deva ir.” 
“Deixem-me ir também!” A Cátia saltou da sombra da Francisca. 
“E tu és?” 
“Cátia. Estive com o Augusto até ir para Tomar. Sabem dele?” Uma frase atrás da outra em rajada. E porque perguntou do Augusto se já sabia? Ou sentia? Talvez... tivesse sido um sonho parvo. Vai, há outras estações para além desta. Ouviu. Sentiu. 
Os dois disseram que não o tinham visto desde a batalha. Ao ouvir a palavra batalha, a velha levantou as mãos ao ar e bradou e perguntou mil e uma coisas. Era uma história longa, mas prometeram contar tudo se guardassem os restos. 

Mariana despachou-se à casa de banho, a Cátia foi buscar um casaco e o Diogo atacou o tacho para provar uma colher de pau nos dedos 
Saíram os três, viu a avó da janela, cada um com a sua voz: nos lábios, no coração, na cabeça. Fora os que ela não conhecia... 
Entraram no carro, a Mariana a conduzir, o Diogo ao lado e a Cátia atrás, bateram com as portas, meteram os cintos e a Mariana ligou a música. Ligou o motor, as luzes e, inclinada sobre o volante, virou em direcção a Almada, a acelerar até à ponte 25 de Abril e, depois para o restaurante O Tropa. 

Jordão 
Leandro 
Lisboa 
Noite 

O Jordão reparou que o irmão estava perdido, confuso, a focar mais gente do que aquela que estava no restaurante. A atenção saltava de um espaço vazio para o outro, e acenava e respondia. Chamou-os para dentro, a ele e ao Guilherme para lhes fazer o jantar. Disse que ia fazer a especialidade do pai, o melhor bitoque de Lisboa. Puxou-os para dentro, obrigou-os a sentar calados e ocupou-se a cozinhar. E, mesmo ao lado do fogão, estavam os jerricãs.

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