Cátia
Mariana
Diogo
Seixal
Fim da tarde
Ainda faltava algum tempo para o jantar na
casa da avó Quicas, mas a senhora já estava atarefada e de um
lado para o outro. A Cátia saiu do telefone e juntou-se à Francisca.
"Sabes como se faz?” Perguntou com os
punhos na cintura, sem desviar a atenção do fogão. “Cobres o fundo do tacho com
azeite; botas-lhe cebola picada em cima e mexes, mexes com o lume baixo."
A Quicas raspou com a colher de pau no fundo
metálico e baixou o bico. Ouvia-se aquele estalar simpático da cebola em azeite
e o aroma de uma refeição em pensamento. O fumo subia da boca do tacho para
cheirarem e sumia no exaustor.
"É a olho, quando vires que está bom,
atiras com o frango lá para dentro e mexes tudo. Depois o sal, tens ali umas
ervas e mais ajustando o sabor.”
Tampou o tacho, só com uma nesga para a água
não subir.
"Vais conhecer a minha neta daqui a
pouco" anunciou a avó, mas a cabeça da Cátia ainda estava nas Ilhas e com os pais. Quando lhes contou da sua decisão ficaram aborrecidos - primeiro com ela - silêncio, depois entre si.
Quiseram saber se estava bem, mas tudo o que
se passou desde a quebra de tensão à estadia numa casa de alterne foi respondido com um tá tudo bem. E até mentir sobre isso lhe pesava.
A matriarca olhou para a moça e procurou-lhe a
cara.
“Já vi esses olhos na cara de todos os que
vieram para cá. Que se passa filha?”
“Sinto que estou a desiludir os meus pais,
Francisca.”
“Filha, se eu fizesse o que os meus pais
queriam, era costureira. Olha para mim!” Abriu os braços para incluir toda a
cozinha e a casa para lá dela. “Não me safei?”
A Cátia sorriu e riu. A senhora voltou ao
lume, mexeu e volto a encaixar a tampa. Enfiou as mãos no bolso do avental e
procurou uma história com moral
“As pessoas fogem para aqui e eu não faço
perguntas.” Pausou e mediu as palavras. “Quem vive e trabalha debaixo deste
telhado faz parte da minha família e ninguém se mete com a Quicas.” Pegou na colher de pau e ameaçou porrada ao
ar.
“Depois há quem faça disto vida ou trabalhe para pagar o estudos e
depois voam do ninho. E tu, filha, já sabes que estás à vontade.” Sorriu, mas
um sorriso maternal e não insidioso ou desconfortável. Ela queria mesmo dizer
aquilo sem segundas intenções: a intenção era de caras.
A Cátia recusou educadamente, que já sabia o que fazer. A Quicas deixou escapar uma gargalhada que foi
sugada pelo exaustor.
“Fazes bem, isto não é vida!” Continuou, mas
lembrou-se de algo que lhe entrou sorrateiramente nas memórias. Sacudiu a
cabeça, os cabelos grisalhos e trancou-se num sorriso.
Pouco tempo depois, o carro que tinha
arrancado da casa da Quicas há uma semana e picos voltou a
estacionar junto à Berlingo. As duas mulheres ouviram a campainha, cada
uma ansiosa à sua maneira, e ouviram a Bonna a fazer a festa. A neta e o amigo
surgiram à porta, com a Bonna Fide atrás, a sorrir como um papagaio de
papel a voar alto.
Também a velha reconheceu os olhos daqueles
dois, os olhos de quem tinha encontrado as suas vozes. Na sua cabeça, tinha
recebido a neta com um abraço lambuzado, mas a vergonha e a penitência do segredo ainda perduravam. Limitou-se a sorrir e a saudar
a neta; depois o rapaz que esteve desaparecido durante dias. À porta, os olhos
dos curiosos acendiam-se aos pares.
O estômago do Diogo contorceu-se ao ver o
tacho enorme ao lume. Passou uma semana a comer comida do campo, mas quando era
feita por ele, a magia era falsa e a imagem da tampa a vibrar no tacho
deixava-o nervoso. Foi então que reparou na Cátia e como a sua cara não lhe era
estranha.
“O jantar está quase” A avó quebrou o gelo.
“Desculpa avó, mas temos de sair.” A voz dela!
Há quanto tempo não a ouvia? Um dedo mindinho de
lágrimas subiu-lhe aos olhos que ignorou a resposta da neta.
“Onde?” Perguntou a Bonna.
“O Guilherme ligou-me quando estávamos a
chegar. O Leandro está a destruir o restaurante do pai e tem o irmão preso.”
“O Guilherme?” Perguntou a avó já na realidade.
“Não, imagina: tem outro irmão! Sabias disso?”
A avó encolheu os ombros e fez uma careta.
“E que tens a ver com isso, filha?”
“Nada, mas sinto que deva ir.”
“Deixem-me ir também!” A Cátia saltou da
sombra da Francisca.
“E tu és?”
“Cátia. Estive com o Augusto até ir para
Tomar. Sabem dele?” Uma frase atrás da outra em rajada. E porque perguntou do
Augusto se já sabia? Ou sentia? Talvez... tivesse sido um sonho parvo. Vai, há outras estações para além desta. Ouviu. Sentiu.
Os dois disseram que não o tinham visto desde
a batalha. Ao ouvir a palavra batalha, a velha levantou as mãos ao ar e bradou
e perguntou mil e uma coisas. Era uma história longa, mas prometeram contar
tudo se guardassem os restos.
A Mariana despachou-se à casa de banho, a Cátia foi buscar um casaco e o
Diogo atacou o tacho para provar uma colher de pau nos dedos.
Saíram os três, viu a avó da janela, cada um com a sua voz: nos lábios, no
coração, na cabeça. Fora os que ela não conhecia...
Entraram no carro, a Mariana a conduzir, o
Diogo ao lado e a Cátia atrás, bateram com as portas, meteram os cintos e a
Mariana ligou a música. Ligou o motor, as luzes e, inclinada sobre o volante,
virou em direcção a Almada, a acelerar até à ponte 25 de
Abril e, depois para o restaurante O Tropa.
Jordão
Leandro
Lisboa
Noite
O Jordão reparou que o irmão estava perdido,
confuso, a focar mais gente do que aquela que estava no restaurante. A atenção
saltava de um espaço vazio para o outro, e acenava e respondia. Chamou-os para
dentro, a ele e ao Guilherme para lhes fazer o jantar. Disse que ia fazer a
especialidade do pai, o melhor bitoque de Lisboa. Puxou-os para dentro,
obrigou-os a sentar calados e ocupou-se a cozinhar. E, mesmo ao lado do fogão,
estavam os jerricãs.
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