Diogo
Mariana
????
Almoço
“Uma semana!” Berrou a Mariana quando deu com
o Diogo a dar de comer aos porcos. Ao lado, as mãos da velha agarravam num
balde invisível que despejava nos comedouros.
Bom dia, menina!
“Vi nas notícias...” espalhou a mistura de
ração e de restos, e afastou-se dos roncos que se atropelavam para chegarem à
comida. Encaixou o balde nas mãos da senhora e sacudiu as calças.
“Mete-te já no carro!” Apontou para a rua.
O avô tinha ficado para trás, admirado e
confuso com a existência daquela aldeia. Era bem provável ter passado por lá
sem ter dado conta, mas... como? Espreitou, falou e cutucou as pessoas sem
terem reacção. Os habitantes da aldeia eram altamente
funcionais, autónomos, resistentes e duradouros, mas limitados a nível de fala.
Tinham umas quantas frases gravadas e pouco mais; o básico para orientar alguém
perdido dali para fora. Eram os NPC perfeitos. Sentou-se no café à espera dos
outros dois, mas mais aliviado pelo rapaz estar bem. Aliás, mais do que bem,
melhor do que muitos!
“Faz isto. Faz aquilo. Anda aqui, vai ali!”
Zombou da miúda. “Desde a pedrada que não tenho tido descanso e nem a porra de uma
opinião!”
“Desculpa?” Ela cruzou os braços. “Quem é que quis
saber do meu pai?”
“Tu! Tu querias, mas precisavas de um alibi-”
“Oh, obrigado! ‘Tadinha da muda. O que faria sem ti?”
“Olha, não me chateies e vai-te embora.”
A Mariana virou-se para ir, mas voltou atrás.
“És igualzinho àquelas coisas” disse num tom
frio.
“Aceito como um elogio...”
“... Mas não era.” Afastou-se. “Então,
ficamos assim?”
“Yeap.” Encolheu os ombros, mãos no bolso. A velha
já ida dali.
“Sabes quando nos rimos quando alguém cai?”
Começou o Diogo a ditar: “É porque o nosso cérebro está programado para
ver pessoas a andar – uma linha recta sem alterações. Quando alguém cai porque
tropeçou, está a fugir da sua programação e o nosso cérebro acaba por não saber
lidar e regista aquilo como uma irregularidade ou anomalia. Rimos ou entramos
em pânico.”
O som das galinhas a serem alimentadas no outro lado
preencheu o silêncio entre as duas pessoas. Continuou:
“Nesse aspecto, eles são melhores do que nós. Não reagem a
nada. Não se preocupam com nada. Apenas continuam, Mariana.”
“Mas também não vivem e não sentem...”
“Parecem-te mal?”
“Não me parecem nada, Diogo...” Aproximou-se
do rapaz que olhou para cima e depois para a rapariga. Cruzou os braços em
jeito de defesa.
“É tão cansativo.” Inspirou e engoliu o ar que
conseguiu. “É tão cansativo sentir coisas e... E... Ou ser a personagem principal. Ter os olhos em nós, à espera que
tropecemos para se rirem.” E aqui a voz tremeu como se estivesse numa linha
alta e quase a perder o pé.
Ela aproximou-se mais um bocadinho do rapaz e
desta vez foi ela a falar:
“Não há problema em sermos personagens
secundárias. O mundo também precisa de pessoas que segurem o escadote.” E então
sorriu.
“OK! Arrastei-te e usei-te como desculpa para
esta aventura, mas na verdade... estava cagada de medo e agia sem pensar, mas
tu? Mantinhas-me na terra... e esta semana foi horrível, estúpido.”
“Sorry...”
“Estamos todos indecisos. Temos todos uma caixa. Pensa no que quiseres, mas
pensa, age, ri-te quando alguém cai – ou melhor: ajuda a pessoa.”
“Yeah...”
“Vamos?” Perguntou uma voz atrás deles.
“Bora” insistiu a neta do António que já
estava cansado.
“Sim, mas volto quando acabarmos.”
“És livre.”
“E onde vamos?” Parou a meio do caminho.
“À minha avó. Algo se passa em Lisboa.”
A simples menção da casa da avó Quicas deu-lhe mola aos sapatos e um brilho nos
olhos. Podiam ter passado o discurso e saltado para a casa da avó que o efeito
era o mesmo.
“Bora, bora!” Chamou-a. Cumprimentou o avô e
seguiram para arrumarem as coisas.
Nisto, em Lisboa.
Leandro
Jordão
Lisboa
Tarde
As portadas das janelas atiraram-se contra as
paredes da rua e os vidros foram levantados, trancados e as cortinas
arrancadas. Lá dentro, o Leandro e os tunos mudavam as mesas, as cadeiras e
arrastaram-nas em U; puxaram dos quadros e das fotos das paredes e esticaram as
bandeiras da tuna.
A porta escancarada berrava a música da folia
e os vizinhos mostravam o descontentamento com fronhas aborrecidas. Conheciam o
Leandro, conheciam o Guilherme, alguns sabiam da morte do pai. Toleravam, mas...
O Jordão desapareceu para uma marcação, mas
voltou logo para encontrar o Guilherme com uma mini na mão e um tom de aflição.
“Estão a destruir o restaurante!” Atirou-se ao irmão que apontou para a
garrafa. O Guilherme bebeu o resto e limpou os lábios. “Vai ver!”
“Eu não quero ter nada a ver com isto!” O
Jordão teve de falar por cima da festa.
“Mas é o teu restaurante!”
“Não! Ele é louco! Tenho de bazar, desculpa.”
Hei, maninhos, onde pensam que vão? A voz veio de dentro, manipulada pela
frequência do megafone, mas sabiam quem era. Venham para cá. Comam e bebam! Convidou-os.
“Xau!” Despediu-se do Guilherme e tomou a rua de
onde veio.
Ó, macaco, disse-te que podias ir? O megafone deixou escapar um feedback
que interrompeu a música e degolou o ambiente. Quando repararam, o Leandro
estava à janela, megafone ao peito e corvos a encurralarem os irmãos. Se vissem
a cena ou o filme Pássaros, era quase igual, só que estes carregavam
pandeiretas, guitarras e paus cuja única música que produziam era a da pele a
estalar e do osso a partir.
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