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terça-feira, 2 de outubro de 2018

WRITOBER 2018 | 2 | Bonjour! Bonjour!

Mariana
Seixal

Fim da tarde


A miúda voava pela casa porque já estava atrasada. Encontrou a carteira no móvel e vasculhou-a para ver dos bilhetes e do passe. Saiu logo disparada prédio abaixo. 
Sair à rua era como na Bela e o Monstro: os vizinhos paravam para a cumprimentar, acenar e sorrir. Ela nem cinco minutos aguentava sem a resting bitch face dar um ar de sua graça. Ela é tão linda, lamentavam. Devia sorrir mais... 
A Mariana era adorada no prédio, conheciam-na na rua e em mais algumas casas à frente. Vá, também tinham pena dela. E tinham medo da avó Quicas. 
Só que a Mariana não queria responder nem cantar! 
Ela era só uma miúda normal. Estudava medicina; tinha namorado e a avó Quicas. Pintava o cabelo de ruivo e cortava-o sozinha, aprimorando na franja. Nariz levantado, olhos grandes e uns lábios finos que desapareciam fechados. 

A sua cabeça estava em todo lado, atrasava-se e perdia transportes com frequência. Agora corria rua abaixo para apanhar o barco; entrou no cais, já a sirene anunciava o fecho da cancela. Deslizou e continuou pelo pontão até mergulhar no barco. Apanhou-o mesmo à justinha! A vida dela era uma colagem de episódios “mesmo à justinha” que davam um filme de aventura cheio de adrenalina. 
Chegou a Lisboa e foi à sua vida. Queria apanhar a abertura do recinto e arranjar um bom lugar na grade, mas quando chegou apanhou foi com a fila. Meteu-se atrás de um rapaz de camisa e mochila, mas os pés quiseram meter conversa com uma pedra solta no chão. Ele virou-se de repente e ela foi obrigada a interagir. Na boa, respondeu o tipo. 
A Mariana cortou logo e sacou do telemóvel. Ele ainda olhou mais uma vez. Ela ignorou-o. Era perigoso quando falavam com ela porque ela não queria – Ela não podia responder. 

Não desde o acidente. Não o dela, mas o dos pais. Foi o cliché: condutor embriagado adormeceu a conduzir e levou o carro dos pais à frente. Foram-se logo ali e, com eles, a voz da filha passado um tempo. 
Perdeu o sorriso e emudeceu de vez. Depois, quando quis, puf, não conseguia falar. Como aquela cena no Sozinho em Casa 2 em que o Kevin passou tanto tempo sem usar os patins que quando os quis usar, já não serviam. Sumiu no ar num fio de fumo de um fósforo queimado. Isto quê? Há três, quase quatro anos. 

As portas não demoraram a abrir e a fila escoou. O rapaz desapareceu para um corredor e ela misturou-se com os grupos. Menos um problema.

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