Diogo
Mariana
Tomar
Mesmo dia, manhã
Tinham três alternativas: continuar a marrar na porta até chamarem a polícia; voltar para Lisboa ou ficar por Tomar. Foram com a terceira, dois quartos separados, e voltaram bem cedo.
O prédio estava mergulhado no silêncio da manhã, apenas com interlúdios de vida quando duas crianças desceram de mochila e uma senhora subiu com um pinscher. O velho surgiu à porta com dois sacos de compras e suspirou ao vê-los sentados nos degraus. As gentes de Tomar começavam a vida cedo ou eram eles que nunca estiveram de pé àquelas horas.
Passou por eles, meteu as chaves na fechadura e desapareceu na escuridão da sua casa. A porta ficou aberta num convite subtil sem confirmação. Ouviram os sacos a pousar no chão e as passadas ágeis do velho até eles.
“Quero fechar a porta” apressou-os para dentro.
A casa era bastante acolhedora e não parecia casa de velho, com móveis de linhas duras do Ikea; não se viam berliques e as paredes estavam decoradas com posters de jogos de várias épocas; passaram pela sala e um ecrã ocupava a parede oposta à porta. O Diogo reparou em várias consolas, recentes e antigas. Uma old man cave.
Queria entrar e explorar; por momentos perdeu-se da missão e das boas maneiras, mas o empurrão da Mariana carregou-o até à cozinha. Um gato laranja roçava-se ao saco das compras que o velho estava a descarregar.
“Querem café?” Ofereceu sem se virar. O Diogo aceitou, a Mariana ficou indiferente. Foi a primeira a sentar-se à mesa. O gato seguiu-a e enrolou-se às suas pernas.
Tirou dois cafés de cápsula e meteu duas fatias de pão a torrar.
"Céus, achava que só te ia ver no meu funeral, rapariga.” Sorveu um pouco do café amargo sem recuperar os olhos da neta. Fazia anos que não via o avô António ou 'vô Tó.
“A Francisca ligou-me quando saíram.” O Diogo deixou cair uma pedra de stevia no café. O gato saltou para o colo da Mariana e aninhou-se. “Ficam para jantar?”
“Acho que sabe porque estamos aqui” puxou o Diogo.
“Massa? Comprei uma pinga para acompanhar.”
A Mariana deixou o braço cair como um machado, mas a mesa continuou muda. O gato levantou a cabeça, e voltou a ferrar. Os dois homens registaram o gesto mentalmente; o avô mais espantado.
“Diabos me levem, é mesmo verdade...” Posou a garrafa de vinho. “Não estou maluco!” Aproximou-se da neta a medo.
“O quê?” O Diogo seguiu o velho. O gato voltou a levantar a cabeça e esticou as patinhas para ajeitar a perna da rapariga.
“Oh, oh. Aquele homem.” Ajoelhou-se e procurou-lhe as mãos. “A Francisca contou o importante, não foi?” A neta puxou-as do avô.
“Bem, só contou que afinal o pai está vivo” atirou com aquela tentativa de sarcasmo.
“O meu filho recusou todas as condicionais.” Levantou-se.
O gato desistiu da estabilidade e saiu da cozinha com um miado longo e grosso.
“Quer cumprir a pena até ao fim para conseguir olhar na cara da filha.”
Os olhos do avô tremiam naquela indecisão de chorar ou manter a postura. Achou os olhos da neta mais sólidos que os seus. De súbito, o ambiente na cozinha arrefeceu. O gato continuava a miar no fundo da casa e a porta do prédio bateu, fazendo tremer a de casa.
“A mãe dele desapareceu. Nunca aprovou o casamento por causa da Francisca e nunca o visitou na prisão. É uma beata agora. Mas eu fui fiquei e lembro-me do que ele disse na primeira semana: «pai, tenho tantas saudades das vozes delas.»”
Duas flores húmidas brotaram e escorreram pela face da neta. O gato voltou a tentar o colo, roçando a cabeça na barriga da rapariga. Os seus dedos enfiaram-se no pêlo do felino, em busca de algum conforto.
“Tive a ideia de pedir à Francisca uma gravação tua e meti-a numa caixa de madeira. Era para ser uma surpresa, mas não deixaram dar. Hum. Mostrei-a na visita e ele ouviu-a tantas vezes que nem falámos nesse dia.” Deitou a cabeça de lado, perdido no seu próprio flashback. “Foi das poucas vezes que o vi feliz depois do acidente. Então levei-a sempre que ma pedia!”
Começou a tirar panelas do armário e a pousá-las no fogão eléctrico. Ainda de costas, retomou:
“Um dia estava ali a jogar e comecei a ouvir vozes. O caraças do gato correu pela casa e ficou a olhar para a caixa. Eras tu! A falar, mas não o que estava na cassete. A falar normalmente!” E agora encarou os dois, enquanto o gato confirmava a história, “nem pensar! Vi demasiados filmes de terror. Mostrei a caixa ao teu pai e muda que nem um rato, mas aqui falava que se desunhava e deixava esse gato histérico.”
“Peguei na caixa e enterrei-a no parque.” Sacudiu a cabeça e os espíritos. Abriu a torneira da água e meteu-a a ferver na chaleira. Quando reparou na torradeira, as fatias de pão já estavam frias.
O Diogo estava estupidamente confuso, mas achava ter percebido o essencial. A Mariana escrevia no telemóvel.
ONDE?
“A cruz marca o lugar” respondeu com um fôlego de alívio. “Agora, o que me dizem do almoço?”
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