Páginas

domingo, 6 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | SEIS

6/10/2019

Break On Through 

“Dormiste bem?” Perguntou o Bernardo ao irmão. 
“O normal.” 
“Não sonhaste com nada?” 
“Capaz. Não me lembro...” 
“Okay...” 

Mais uma vez, ninguém tinha comprado nada para o pequeno-almoço e tiveram de ir à rua. Um café bem cheio e aquela mista.  
Como se iam embora de tarde, o Carlos carregou a mochila para ir dar uma volta pela zona e despedir-se da aldeia. Era tão provável que não voltassem ali tão cedo – ou nunca. 
Ao balcão, um dos velhotes que tinham visto na outra manhã olhava-os com atenção até que decidiu aproximar-se. 
“’Dia! Desculpe a perguntinha, mas não são filhos do António?” 
“Netos!” O Bernardo afastou a chávena do café. “Filhos da Beatriz.” 
“Da pequena Beatriz? Irmã do Daniel? Lembro-me bem! Como estão?” 
“O tio Daniel está na cidade. A nossa mãe faleceu há pouco tempo.” 
O Carlos limpou a boca e o velhote olhou para o chão embaraçado. O rapaz ao balcão continuava a secar a louça.
“É uma pena, uma pena... Os velhos aqui e os novos a ir...” estalou com a língua e voltou para a sua mesa e para o copo. 
O Carlos pagou e saíram para o sol da praça. 

“Carlos, anda dar uma volta.” 
“Muito calor. Vou jogar.” 
“Ficas bem?” 
“Yeap.” 

O irmão mais novo arrepiou caminho e o outro ajeitou as alças da mochila e seguiu para baixo, em direcção ao terreno. Passou pelos muros, pelas piscinas e pelo portão de grade do descampado. Olhou em volta, não havia ninguém por ali ainda. 
Acelerou em direcção à cerejeira velha e observou a sombra da árvore. Depois lançou-se à terra como um cão e atirou pó ainda misturado com cinzas pelo ar. Pouco a pouco, a porta voltou a aparecer com detalhes e relevos. Por fim, a fechadura – mas sem maçaneta. 
Quando acabou já havia gente nas piscinas. Não tinha dado pelas horas, mas já se enfiava lá dentro para se limpar. Sacudiu o pó da roupa e limpou a testa com as costas da mão esquerda. 
Ali estava ela, a fechadura, mas nenhuma maneira de abrir a porta. Com cuidado para não sacudir a porta, esticou o braço para baixo e apalpou o nada. A mão fechava-se sem agarrar nada. Levantou, baixou, para a esquerda. Nada. Ajustou à direita, um bocadito mais acima e a palma sentiu o frio do metal e fechou-se à volta de uma pequena esfera.  

Boom boom boom 

Virou-a e cedeu. A porta abriu e deslizou para si. 
Estava cada vez mais difícil respirar e o peito estava tão pesado. As mãos tinham correntes enroladas e ele nem conseguia dar um passo para a frente... ou para trás. 
“Que caralho estou a fazer?” 
Largou a porta. Não dava para ver nada para dentro. 
Tirou o telemóvel do bolso e apontou a lanterna: havia outra porta no final do túnel, que nem era assim tão longo.  
Abriu o chat com o irmão e escreveu: 

Abri a porta. Não te preocupes. 

Apagou. 

Abri a porta. Volto já. 

Apagou. 

“Nem uma mensagem consigo escrever!” 

Abri a porta. Até já, rapaz. 

Deu um passo em frente e o sapato aterrou com um ploc. Depois o outro. A porta fechou-se atrás dele com um clique e com o contorno de luz a desaparecer, deixando-o na mais completa escuridão. 
Ele estava bem. Pensava que ia ter medo ou que a ansiedade o fosse comer, mas sentia-se bem (?). Leve (?). A última vez que se sentiu assim foi quando a médica das urgências o fez sentar para a notícia: Fizemos o possível para a reanimar, mas chegámos tarde demais. 

Sim, ele ia ficar bem. 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Followers