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sábado, 5 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | CINCO

5/10

Consegues Ouvir a Chuva?

Os corpos jaziam à chuva. Alguns a segurar nas entranhas, com aflição; tanto sangue derramado na lama.  
Uma mulher caminhava solenemente por entre os soldados. O cabelo louro sujo, entrelaçado às costas e empapado. A capa colada à armadura branca. Puxou da lança para cima e encravou-a na cabeça de um soldado. A mulher girou a arma com gozo. Faltava-lhe um dedo na mão esquerda. 

 Que dia.
A casa estava em silêncio e o Bernardo estava às voltas na cama. Há muito que o irmão tinha apagado, mas ele não conseguia pregar olho. A cabeça estava a ali e noutros lados: as cinzas da mãe, a porta à sombra da cerejeira velha... 
O Carlos escavou a terra e arremessou-a. Não estavam a imaginar: estava mesmo ali uma porta. E quando tentaram tocá-la, as mãos passaram para o nada. Sacudiram o pó e a porta desapareceu.
Voltaram a casa. Comeram. Discutiram o que viram e passaram o resto dia assim, num misto de curiosidade e de ansiedade, embora nenhum o quisesse admitir. E quando passavam pela janela, olhavam de soslaio na direcção do terreno.

Na cama, o Carlos adormeceu como sempre. Se o sono era uma porta, a dele estava sempre aberta. O irmão mais velho continuava a virar-se, a olhar frustrado para a sua porta do sono sem saber o que a mantinha fechada.
Estava a acontecer algo no outro lado. 
Ouvia a chuva quando não chovia na aldeia nem em lado nenhum. O vidro estava seco, mas no outro lado da sua porta, a chuva batia com intensidade.
Enfiou a cabeça na almofada para abafar o ruído de fundo.
Passos. Alguém estava a caminhar pela casa, em cada quarto. O Carlos..., mas ouvia-o a roncar no outro quarto. E aqueles passos pareciam ensopados. No canto da mente, o fragor crescente de um tambor de guerra confundiu-se com as batidas do coração. E depois viu os vultos, pequenas sombras chinesas sentadas, a falar e a rir. E outros a aproximar. Boom, boom, boom. 
Cobriu os ouvidos e o cansaço venceu.

 Num outro lado da porta, um jovem soldado levantou a cabeça quando a primeira gota caiu. Outra gota na folha de papel. A carta já tinha dois borrões de tinta como uma cara chorosa.
“Outra noite fantástica” comentou o camarada encostado às suas costas. “Chuva!”
“Gostas mesmo de ensopar, tu.”
“Arruma lá isso ou não te dão mais papel.”
“Tá, tá.” O rapaz enfiou a folha dentro da farda e ajeitou o impermeável. Tirou umas bolachas do bolso e tirou duas. Deu a segunda ao companheiro.
“Vai ser uma foda ver alguma coisa.”
Olharam em volta só para dizer que o fizeram. Não acontecia nada no acampamento que levantasse suspeitas. Havia mais vigias espalhados, mas o resto do pessoal estava nas tendas. Havia gente na tenda da messe, nos rádios e no comando, mas só aqueles dois estavam por ali.
“Ainda tens o feijão? Molhava a bolacha com uma pinta...”
“Ná...” respondeu a mastigar.
“Há meses que andamos na pasmaceira. Achas que os Braços vão atacar?”
“Ná...” mastigou o resto. “A frente não os vê há semanas. Recuaram. Com sorte, aqui só apanhas uma gripe.”
“Foda-se, era de maneira que me recambiavam para casa!”
Riram-se. O soldado guardou o papel das bolachas no bolso e cobriu a cara.
“Queria acabar de escrever isto...”
“Amanhã... Dormes primeiro? Eu aguento por aqui.”
“Se fizer o favor, fecho os olhos um bocado.”
“Boa noite, meu lindo” roncou.
Adormeceu um. Não demorou até adormecer o outro.
Os dois soldados – duas crianças - estavam cá fora. Às escuras e com uma chuvada que varria o acampamento como uma cortina de ferro. Se alguém visse um palmo à frente, era um sortudo. 
Um deles tinha uma carta escrita até meio, enfiada na farda. Húmida, mas não destruída. Ainda dava para terminar. Juntaram os impermeáveis que já tinham desistido de os manter secos e dois saberes estavam estendidos às pernas. Eram os piores vigias, mas também... quem os podia culpar naquelas condições?
As árvores cediam ao peso da chuvada. E o guincho do vento abafava os passos das sombras que corriam de tronco em tronco. Havia um ditado que as pessoas ignoravam: quando o mar recua não significa segurança, mas um maremoto. E a noite desabou com uma onda. Saíram das árvores e caminharam para as tendas em silêncio. Podiam ser apenas Braços, mas havia Cérebros com planos e estratégias. E uma Mão a liderar. A General Tasia cabeceava os Braços, ignorando a tempestade porque trazia outra consigo. Lança em riste na mão com todos os dedos. Olhos fixos nos dois vigias inúteis.
Quem viu combate e voltou para se perder na bebida, contou a mesma história de sempre: os Braços não eram soldados comuns. Alguns juravam que nem eram humanos, mas o bafo a álcool tirava-lhes a credibilidade... 
O que quer que fossem, caíram sobre os desprevenidos e varreram as tendas, não deixando nada ao acaso. Um pobre que tentava não escorregar na latrina fora trespassado pela porta e deixado cair na merda.
Os olhos atentos de Tasia observavam a violência com total serenidade. Os seus Braços estavam quase a acabar por ali, mas havia muito trabalho pela frente. Continuou a andar pelos cadáveres, alguns gemiam e chamavam por nomes. Chutou um braço que se prendeu às botas e estacou junto a dois soldados tombados. Um deles rangia os dentes, com o sabre entre as mãos flácidas. A Mão puxou da lança para cima e cravou-a no peito da vítima, que se engasgou no seu sangue. Puxou-a para si e deixou a chuva escorrer o sangue.
Quanto terminou, tinha os vultos brancos dos Braços a aguardar. As gotas a ricochetear nas armaduras ensanguentadas.

Tal como apareceram, desapareceram nas árvores.

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