4/10/2019
Canta o Galo
O pessoal da cidade não acorda com galos. Instala-os em apps ou outros sons ambiente para despertar.
Na aldeia, o bicho cantou às cinco da manhã e acordou os irmãos estremunhados. Uma, duas, três vezes. O Carlos virou-se para voltar ao sono; o Bernardo fitou o tecto até o despertador se calar. Quando se fez silêncio, adormeceu até às nove e acordou com o despertador oficial. Alguma normalidade por ali.
Não havia nada para o pequeno-almoço.
Depois de um banho frio, pegaram na arca, com a urna escondida, e saíram para pedirem um balde de café e duas mistas na rua. Comeram, beberam, pagaram. Os habituais do café equilibravam a bica com o cheirinho, e não deixavam de espiar os rapazes. Conheciam-nos? Talvez, mas não os conseguiam associar a alguém da aldeia. O café, apesar de antigo, já tinha visto mais gerência que a aldeia tinha visto galos, portanto não os podia safar.
Sempre a descer, os irmãos seguiram em silêncio até aos campos de cultivo, onde a avó os tinha levado para brincar e comer cerejas lavadas num rego que lá corria, mas as novas gentes estavam a borrifar-se para o cultivo. Era mais chique ter uma piscina. Mais chique, cada terreno ter a sua.
O Carlos e o Bernardo caminharam pelos corredores de muros e foram dar ao único terreno abandonado, que não via mão nem ferramenta desde sabe-se lá quando. Empurraram a grade torta, avançaram pelas ervas selvagens e chegaram à cerejeira velha, grossa, que resistia aos anos e às saudades de quem lá ia e deixou de existir. Não estava em flor nem tinha fruto. Parecia morta como o terreno à sua volta.
“Achas porreiro aqui?” O Bernardo virou-se para o irmão.
“Sure” respondeu o outro.
O Bernardo posou a arca no chão e desviou a tampa para o chão. O Carlos puxou a urna para si e desenroscou a tampa metálica. O Bernardo tirou um tubo do bolso, uma caixa para guardar rolos de fotografia e mergulhou-o nas cinzas.
“Caso seja preciso... Queres?”
“Não, despacha-te.” Fechou a caixinha e voltou para o bolso.
“Bora lá...” Enfiou a mão. O irmão a dele. Cada um com um molho de cinzas a escaparem por entre os dedos. E atiraram contra a cerejeira e pela terra abandonada. Passado, presente e futuro naquelas mãos. Quando caíssem as chuvas, tudo voltaria à terra.
Uma vez. Duas vezes. Três. À quarta, as cinzas do Carlos esbarraram no ar. O Bernardo reparou e atirou a sua cinza para o mesmo sítio - os borrões não obedeciam à gravidade.
Em pouco tempo, os irmãos arfavam e suavam, e à sua frente tinham uma porta feita de cinza e de pó.
Os ramos da cerejeira receberam a rajada e a porta sumiu-se.
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