O Joel não estava para muitas conversas.
Atirou com a mala de lona para a caixa da carrinha e voltou a casa. O Bernardo imitou-o outro, e ficou encostado à carrinha da mãe. A manhã estava no fim, tinham descansado bem e os rapazes estavam carregados de força e motivação, mas não de disposição.
O jantar e a noite tinham corrido “bem”. Estava mais aliviado porque o rancho deste mundo era igual ao do seu, mesmo requentado do dia anterior. Comeu bem, bebeu ainda melhor, e a Laurinda era uma senhora! E falava, e falava, e tudo o que dizia não se desperdiçava.
Mas a conversa não tinha corrido bem ao novo amigo: acontece que ele e a Vera estavam noivos e para casar, mas quis o destino sádico que ele “morresse” em combate.
O problema é que ele estava bem vivo e a jantar restos na sua casa, a ouvir a sua mãe na sua cozinha – se não tinha morrido, talvez não passasse dessa noite.
“O teu pai continuou a beber e desapareceu. Eu continuei a trabalhar e cá estamos, mas a pobre Vera chorou-se toda a ponto de quase cegar, coitada” contou entre colheradas. Bebeu o resto do copo de vinho.
“Ela tinha-te tanto no coração, filho. Um dia veio cá a casa e comemos as duas. Pediu-me tantas desculpas, mas tanto te chorou que um dia acordou e tomou uma decisão.”
A vida continua em frente. Nunca para trás, dona Laurinda.
“Decidiu ir para Lisboa.”
Quero estudar música. Quero dar alegria às pessoas que a perderam.
“Pediu a minha bênção que não era minha para lha dar, mas dei-la. Chorámos as duas e saiu livre desta casa. O teu pai bebeu-se livre, a Verinha foi-se educar livre e eu fiquei pelos que partiram.” De novo, a senhora gigante e forte que ergueu um soldado no ar parecia mirrar com as palavras.
E quis o destino sádico que um grupo musical visitasse Salvador pelas vindimas. Com ele, veio um jovem engraçado que se enamorou da Verinha.
“Não sei se ela lhe achou piada, mas quando o grupo se foi, a Vera desapareceu. Malas e guitarra.”
Descansou os olhos com um sorriso. Estaria a pensar no baile? Na moça ou no “Se” se tivessem casado? Teria a noção que cada palavra sua dilacerava a carne do soldado que vira todo o tipo de violência e morte? Vale tudo na guerra e no amor.
Nessa noite, o Bernardo viu-se a dormir no chão, no quarto do Joel. Ouviu-o a soluçar muito baixinho quando pensava que era o único acordado. Adormeceu a olhar para uma foto pendurada de um casal e voltou a outro dia e a outro quadro a preto e branco.
Mas nessa manhã, o Joel voltou à porta com um rolo de lona debaixo do braço. Abriu a porta do passageiro e escondeu-o sob o banco.
“Que é isso?”
“Defesa” respondeu com metade de um sorriso ferido.
Puxou do embrulho e tirou uma bainha. O punho rudimentar estava enfaixado com cabedal e uma lâmina cresceu da guarda – nada era espectacular dali, mas para o rapaz que nunca empunhara uma, aquilo era surreal. O amigo careca sacudiu a espada no ar, separando-o em vazios que se juntaram logo.
“Não sabemos quem vamos encontrar pelo caminho.”
“Esperas problemas?” Uma serpente ansiosa deslizou-lhe pela espinha quando olhou para a segunda espada e sabia ser sua.
“Estamos em guerra, amigo. Prevenção.”
Podia concordar com isso: havia uma guerra algures naquele mundo. O Joel tinha morrido em combate e o Bernardo não existia. Dois espectros que não tinham razão para ali estar, mas que se acomodavam numa carrinha de caixa aberta e arrancavam para Lisboa.
Um ia em busca do homem dos livros e a única pista era um anel azul; o outro ia em busca da sua amada e surpreendê-la com a sua vida.
Não há duas sem três e quis o destino sádico tocar a sua melodia. Agora todos iam dançar.
A carrinha pegou e descereu a rua escura; passou pelo café e pelo pelourinho e deixou Salvador para trás.
O soldado tirou o braço do lenço e assentou-o na mudança. O Bernardo não conduzia e não era neste mundo que ia começar.
Ajeitou-se no banco, e sentiu as espadas com o pé. A serpente da ansiedade sibilou-lhe ao ouvido.
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