O Joel e o Bernardo entraram em Salvador.
Esta aldeia ficava um nada mais afastada do que a dele; tentou reconhecer as ruelas, mas eram-lhes estranhas e quando passaram pelo café, apenas os velhos a olhar lhe fizeram lembrar do último pequeno-almoço com o Carlos.
Olhavam e cochichavam e um ou dois caminhou com eles, à distância. Havia um grupo de crianças no pelourinho que se calou quando o soldado de braço ao peito se aproximou. Se olhassem dois segundos para o Bernardo era muito.
O Joel ainda as chamou, mas fugiram desconfiadas. Ignorou-as e apontou um caminho escuro, para onde iam. Parou em frente a um portão de ferro e desceu para o carreiro que levava a uma casa de pedra, a perder a batalha contra o tempo. Com o braço bom, começou a esburacar uns vazitos e escavou uma chave que sacudiu na farda. Serviu. Rodou. Empurrou a porta para dentro e convidou o outro a entrar.
"Queres ir a Lisboa e procurar um homem com livros. É isso?" Perguntou o Joel com a broa na mão. "Passas-me a faca?"
O Bernardo esticou-a com o cabo virado. "Sim" respondeu.
"Tem nome?" Estudou a faca e a broa e percebeu que talvez não fosse assim tão fácil.
"Não perguntei..." Era verdade: não perguntou.
"Corta aí duas fatias, se fazes o favor." Passou a faca e depois a broa. "Assim não vai ser fácil."
O Bernardo prendeu a broa dura na mesa e serrou duas fatias tortas. Uma para si e a outra para o amigo.
"Tens de ir a Viseu." Puxou a garrafa de vinho. "Apanhas o dirigível. Ou vais a Aveiro para o comboio."
Deu a garrafa ao Bernardo que puxou da rolha em segundos. Encheu dois copos e cada um deu um trago.
Nisto, a porta de casa foi disparada contra a parede e uma mulher forte marchou até à cozinha. Com dois braços de tronco, agarrou no colarinho do Joel e levantou-o do chão. Sem cuidado pelo feriado, o copo entornou-se na mesa e a cadeira foi projectada pelo chão. O Bernardo reagiu em sua defesa, mas o rosnar da mulher congelou-o.
"Tu estás morto!"
"Não roubámos nada!" Berrou o Bernardo como uma criancinha.
"Vieram a esta casa! Disseram a mim e a o teu pai que tinhas morrido na merda daquela guerra!"
Atrás da mulher, o Bernardo não conseguia ler as expressões dos dois, mas adivinhava que algo não batia certo.
"Olá, mãe."
Mas a mão não estava com meias medidas e sacudiu o filho para o chão. Se não tinha morrido na guerra, iria morrer ali.
"Tu não sabes o que fizeram a esta família! O teu pai, ai o teu pai!"
"O que tem o pai?"
"O homem bebeu até se borrar todo. Nunca mais o vi!"
Silêncio na cozinha. A mãe dobrou-se e apanhou o copo que voltou a encher. Deu ao filho no chão e endireitou a cadeira.
"E tu? Quem és?" Perguntou ao outro quando reparou na sua presença.
"Bernardo, senhora."
"Estás morto também? Os teus pais?"
"Mortos..."
"Ao menos poupaste-os a estas figuras. Sou a mãe do Joel, Laurinda."
"Prazer..."
A figura da senhora era tão imponente que fazia a casa encolher até não sobrar mais nada. Era ela ao centro, o Bernardo encolhido como uma besta amedrontada e o Joel encostado à parede, com um copo de vinho. Não havia um tic toc a preencher o silêncio, apenas as respirações e algum zunzun da rua. A luz trespassava as cortinas e as partículas de um pó antigo dançavam pela casa. Parecia que estava na casa da avó, broa, vinho e tudo. Até que a Laurinda interrompeu o quadro:
"Tenho de trabalhar porque parece que afinal tenho filho... Jantam cá?"
Os rapazes entreolharam-se como pequenas crianças e acenaram que sim. A mãe saiu e bateu com a porta.
Depois voltou a entrar e correu para o filho que se encolheu de medo. Abraçou-o e beijou-lhe a cara, deixando-a quente das lágrimas. Andou para o Bernardo e fez o mesmo, acrescentando que sentia muito pelos pais dele. Apertou-o um bocadinho mais de tempo e soltou-o.
A mulher forte era mesmo forte, mas naquele segundo parecia mais pequena. Ainda com a face quente e húmida, agradeceu à senhora que fugiu para a porta.
"Mãe," perguntou o Joel. "Ainda estou para casar?" Levantou-se, fazendo força com o braço bom.
"Onde anda a Vera?"
"Oh meu filho... A tua Vera foi-se quando morreste..." e saiu.
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