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terça-feira, 8 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | OITO

Patati Patata

Foi tudo muito rápido.
Com uma mão ao peito e ergueu-se do chão. Puxou da rapariga pelo braço e amparou-a para o corte junto à árvore, batendo com a porta. Despareceram.

Passou uma hora, controlou pelo telemóvel. Uma hora desde que se enfiaram no túnel. Para poupar bateria, desligou-o e ficaram às escuras. Com as mãos e os joelhos na água, gatinhou à porta e abriu uma nesga para a rua. A lua espreitou para dentro com uma linha de claridade que os dividia. Não a podia ver, mas sentia-a à sua frente.
“Ainda estão lá fora?” perguntou a rapariga a esfregar os pulsos.
“Quem?” respondeu de costas, não vendo ninguém no outro lado.
“Os Braços que estavam atrás de mim!”
“Não vejo braços daqui...”
“E a ela?”
“Ela quem?”
“A Porcelana Branca.”
Pronto, o Bernardo encostou a porta e encarou-a. Mesmo sem a ver, mantinha uma breve memória da sua cara suja. Ali no túnel só a ouvia a debitar jargão, a respirar, a gemer, mas a fazer sentido? Ainda não.
“O que estás para aí a dizer?” atirou, quase a levantar a voz do sussurro. “Braços? Porcelanas? Nada disso faz sentido! Nem sequer sei quem tu és ou porque estavas amarrada!” Depois calou-se e o eco imitou.
A rapariga deixou de esfregar os ombros e olhou na direcção da voz. Ou ele achou que ela fez isso tudo. Ouviu-lhe a língua a estalar com um certo snobismo, mas a voz que ouviu a seguir saía com uma certa maturidade e cada palavra era pesada antes de ser dada. Não sentiu a necessidade de levantar a voz, falou normalmente, seguida de um eco igualmente formal.
“Chamo-me Frederica de... Só Frederica. E tu?
“Bernardo. Também só Bernardo.
“Obrigada pela tua ajuda. Agora, viste alguém na rua?”
“Ninguém.”
“E que sitio é este? Não havia nada aqui quando olhei. Havia a árvore e fui contra ti!” Ele riu-se.
“Desculpa, não era a minha intenção. Também não faço ideia do que seja este sítio. É a minha primeira vez.”
“É uma porta mágica?”
Tada!” Riu-se novamente.
“Pára!” E bofeteou a água para cima dele.
“Estou a falar a sério! Entrei por ali, vim para aqui e saí por ali. Vieste para cima de mim e aqui estamos. Não sei o que te dizer mais, Frederica.”
“Um de nós por ter-se aleijado...” atirou a rapariga com algum desdém.
“Claro. E se fossem os bracinhos estarias pior.”
Ela chutou mais água para cima dele.
“É mentira? Afinal o que aconteceu? E porque vinhas presa?
A Frederica suspirou e endireitou-se no chão molhado. Depois do que aconteceu, um rabo húmido seria o menor dos seus problemas. Andou com a mão pela água e esfregou-a enquanto se preparava para falar.
“Estávamos a voltar para Coimbra quando os Braços apareceram. A turma tinha ido a Viseu para um trabalho e foi na volta que nos caíram em cima... alguém do nosso grupo abriu a boca.” Ouviu um soco na água.
“Vimos as notícias. Sabíamos que a Porcelana Branca... a Mão...” e no recorte da luz, ela reparou na confusão que pairava no olhar do rapaz. “A Porcelana Branca é a General Taisa, uma das Mãos que lideram os Braços. Sabíamos que ela estava de visita à Universidade de Coimbra.
Todo o silêncio, apenas aquele momento em que ela mexia com a mão pela superfície rasa da água.
“Quando os nobres enviam os filhos para as universidades, eles perdem o tratamento especial e são tratados como alunos normais. Fantástico para exilados e tínhamos alguns na turma, mas hoje fomos parados pelos Braços e vi-a. Ataram-nos e fizeram perguntas.” Parou e ouviu-se o engolir em seco.
“Mas começámos a lutar entre nós. Acho que acharam o traidor, mas não o vi. O Josué disse-me para fugir e aqui estou... Meti-me pelas árvores e só corri quando lhes ouvi os berros e aquela voz horrível dos Braços!
“E a General?” Perguntou interessado depois de fechar a porta.
“Nada...” desabafou a voz incorpórea da Frederica. “Não estaria aqui se a Porcelana Branca me seguisse...”
“Porquê o nome?” sussurrou.
“São títulos que as Mãos têm. De todos, só vi a Porcelana de perto. Tem o nome por causa da armadura que é tão pálida como a sua pele.”
“Não é tão intimidante, pois não?” Comentou.
“Também tens a história que nenhum adversário a fez sangrar.”
“Manda os braços atrás de raparigas atadas e fica a ver. Uau.”
“Ela mata-te antes de a veres.”
“Tá. Histórias.”

Outro silêncio grávido, até que ele se aproximou com um detalhe que andava a remoer: “Disseste Viseu e Coimbra?”
“Disse.”
“Há uma Coimbra e Viseu naquele lado?” Apontou para a porta. “E alguma aldeia aqui perto?”
“Acho que sim? Não sou daqui.”
“Pois, na minha porta também temos uma Coimbra, Viseu e universidades, mas sem nobres. Os que existem são uma anedota.”
E se ele conseguisse ver alguma coisa, veria a cara de choque dela.
“Falam assim dos vossos nobres?”
“Oh, não há outra maneira! Pior são as pessoas que acreditam neles, sério. Já nos deixámos disso há anos. Vivemos numa república democrática, Frederica.”
As mãos da rapariga dispararam molhadas para o pescoço do Bernardo. O rapaz que estava a cuspir na nobreza e a dizer barbaridades como república e democracia. Falharam e arranharam a cara, mas conseguiu agarrar no rapaz e puxá-lo para si. Ele tentou afastar, mas ela era mais forte.
“Repete o que disseste!” Agora sentia-lhe a boca a mexer e toda a fúria e incredibilidade.
“Repito o quê?” Engasgou-se, ainda a tentar fugir.
“Sobre a república e democracia!”
“O que tem?”
Ela atirou-o contra a parede. E saltou do chão, splash splash contra a porta dos fundos. Bang bang! O coração dele e a porta. E chutou-a. Forçou a maçaneta. Splash splash para o Bernardo que já estava mais do que molhado.
“O que estás a dizer... É de loucos. Funcionou?”
“O quê?”
“Tu nem fazes ideia. E eu tenho de voltar.” Parou, girou sobre si, disparando uma onda água para cima dele. “Estou muito agradecida” ofereceu mais calma. “Sério...” e o tom maduro voltou, com um ligeiro tempero a delicadeza.
“Erm, de nada. E eu... tenho de voltar, mas parece que só tenho um caminho agora.”
“Nós os dois só temos um caminho e é em frente. Ouve, Bernardo, vou ter de sair.”
“Para onde?”
“Confia em mim, é melhor não te dizer. O Império não anda à tua procura e tu nem existes ali! Não sabes a sorte que tens.”
“Mas eu preciso de voltar para casa!” Levantou a voz para a sua porta.
“Não te posso ajudar aí, mas posso dizer-te para ires até Lisboa.”
“Até Lisboa...” comentou entredentes.
“Sei de um homem que pode ajudar. Vi-o algumas vezes e tem as paredes cobertas de livros. Um deles pode ajudar. Diz-lhe que vens da Frederica.
“Se a vossa Lisboa ficar no mesmo sítio que a minha, sei ir para lá. Obrigado...”

O par saiu da gruta e a noite tinha-se feito em dia. Não havia sinal de braços ou mãos ou porcelanas. Era um daqueles dias que vinha a seguir ao outro, normal e de trabalho, mas todas as intrigas e conspirações atrás da cortina. E outros mundos com outras cidades e aldeias e livros. O grande astro no céu era cúmplice dos dois e sabiam que ambos tinham mais para partilhar. Por agora, engoliram tudo e despediram-se.
“Toma” puxou-o para si e tomou-lhe as mãos. “As pessoas vão achar que és maluco. Cuidado com quem falas, sim? E se um dia precisares de mim, usa isto.” 
Abriu-lhe as palmas para cima e deixou cair um anel. Era todo azul roubado ao céu, com pequenas gravuras que não conseguia ler. Quando o anel passou para ele, sentiu um choque de tranquilidade que lhe disse que ela não estava a mentir. Ele iria ficar bem e aquela recordação era a certeza disso.
A Frederica voltou a fechar as suas mãos sobre as dele. Sorriu-lhe um sorriso triste que dizia mundos e ele viu-a com olhos de ver à luz do dia. Ela era um pouco mais baixa do que ele, cabelo castanho preso atrás, mas mais desfeito do que outra coisa, e muito sujo. E a cara também, pequenas crostas aqui e ali. E o cheiro...
Afastou-se e correu quando não viu ninguém por ali.

E o Bernardo fechou a porta para o túnel. Para o seu mundo. Olhou em seu redor e não viu piscinas, muros ou casa. Viu a Frederica a correr em direcção às árvores, a desaparecer. Enfiou o anel no único dedo onde cabia; arrumou o canivete no fundo da mochila e ligou o telemóvel que tinha a carga toda. Abriu as mensagens para o seu irmão e releu a última:

Abri a porta. Até já, rapaz. 

Lida. Ao menos isso, pensou. Desligou e atirou a mala por cima do ombro e meteu-se ao caminho, na direcção que julgava levar a São Salvador, a aldeia da sua mãe que não o era aqui.

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