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quarta-feira, 9 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | NOVE

Mama, I'm Coming Home

Podia estar noutra realidade ou mundo paralelo, mas o seu sentido de orientação continuava o mesmo. Não funcionava num mundo, não funcionava no outro. E a aldeia era sempre em frente, para lá das piscinas e dos muros de pedra.
Talvez aqui fosse noutro lado. Talvez São Salvador não existisse – a aldeia ou o santo ou qualquer noção de religião. Nah, teria de haver sempre uma religião onde quer que estivesse. As pessoas são demasiado preguiçosas (e covardes) para acreditarem em si ou fazerem o trabalho todo, teriam de rezar a alguém para terem as coisas. Se não a um deus ou a Deus, talvez rezassem a um tamanco para pedirem ajuda para andar.
E estava a perder-se na cabeça e no caminho quando surgiram as primeiras casas ao longe. Se não fosse São Salvador, seria outra aldeia. Se havia casas, havia pessoas e indicações para Viseu. Viseu! O Bernardo tinha família em Viseu... E outro pensamento esgueirou-se até ele, será que havia o equivalente de pessoas? Outra família? Outra mãe e irmão?
E com isso, não deu conta daquela sombra que o engoliu.
Só reparou quando já estava mergulhado na escuridão e olhou para cima para contemplar a nuvem gigante. Mas não era uma nuvem, mas a barriga de uma baleia gigante que o ultrapassou para as casas.
Veio calada, mas cantou quando viu as casas. Um som tão alto e repentino que atirou com o rapaz para o chão. Rebolou sobre a mochila, a cobrir a cabeça e a gritar de volta à monstruosidade que se afastava. Depois passou e deixou-o para trás, deitado na terra como um maluquinho.
Olhou em frente e começou a entender o que era aquilo. Não era baleia nenhuma!, mas já os tinha visto em livros de História ou em Steampunk.

Mas antes de passar as palavras da cabeça para a boca, alguém deu-lhe um chuto na perna.
“O que raio andaste a beber, moço?”
O Bernardo olhou para cima e viu um careca a olhar para baixo. Trazia o braço ao peito e um saco de lona no outro ombro; estava enfiado numa farda um número acima do dele e trazia o nome RIBEIRO ao peito.
Deixou o saco escorregar e estendeu-lhe o braço, e a mão aberta.
“Upa, vamos meter-te em pé.” Mas o Bernardo ainda estava fixado no dirigível que sobrevoava as casas, cobrindo-as com a sua sombra de baleia voadora.
“E nem é dos maiores! Anda lá, tenho a boca seca e quero um bocadinho do que bebeste.”
O Ribeiro alçou-o com tremenda facilidade do chão e o Bernardo sacudiu-se atordoado.
“Desculpa?”
“Estás desculpado! Estás a ir ou a voltar de Salvador?”
“Salvador é ali?”
“Estás mesmo fodido... Há quanto tempo voltaste?”
“De onde?” devolveu o Bernardo confuso.
“De onde? Onde é que serviste?”, mas deteve-se a tempo de ver a confusão a inundar a vista do outro. “Pronto, pronto. Não pergunto mais. Chamo-me Joel. Joel Ribeiro.” Apontou para o nome na farda.
O Joel apanhou as malas do chão e estendeu a do Bernardo que a meteu às costas. Sem esforço, apoiou a sua no ombro são e seguiu sozinho para a aldeia, a arrastar poeira e pedras.
Deu corda aos sapatos e seguiu o soldado que tinha voltado de uma guerra algures. O Joel sorriu-o com amizade e começou a assobiar uma melodia que o Bernardo julgou reconhecer bem no fundo da sua cabeça, mas que não conseguia identificar sem saber que iria ser a sua perdição, maldição e tudo acabado em “ão” mais para a frente na vida.


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