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terça-feira, 1 de outubro de 2019

WRITOBER | 2019 | UM

1/10/2019

Fim

O homem embrulhado no casaco comprido coxeou a idade caverna adentro.
Carregava uma mochila, uma alça ao ombro e a outra pendurada. A mão contra a parede guiava-o pelo caminho frio, e familiar. Tinham passados anos – mas muitos desde que ali estivera pela última vez. Não guardava as melhores memórias, mas estava ali para cumprir uma promessa, saldar uma dívida. Se todos faltassem com as suas palavras, o que seria feito do mundo? Ou dos mundos.
O desconhecido chegou à boca da passagem e estacou para habituar os olhos ao azul que cobria as paredes de cristal. Levantou a mão e aproximou-se devagarinho, olhando pela sombra dos dedos, para o reflexo que crescia para si.
“Vieste” disse uma voz no canto da caverna.
“Vim.” O chegado olhou-se de cima a baixo. Aquela figura no cristal, cara enfiada no cachecol, casaco comprido, mala cheia que nem balão - quem era? Descobriu-se numa cicatriz a percorrer o olho e tocou na parede. “Prometi que vinha” acrescentou.
“Ainda fazem disso? Cumprir promessas? Só surpresas, hoje.” A voz aproximou-se por trás e os dois reflexos reencontraram-se passados quê, quarenta anos? Um estava igual, o outro nem por isso.
O dono da voz tinha um cabelo branco como algodão antes de ser usado; pele de velho com veios a transbordar de idade. Um nariz torto e uma boca que sorria de satisfação. Acenou ao outro e perguntou:
“Pronto?”
“Não, alguma vez estarei?” respondeu.
“Justo. Demorei uns mil e poucos anos a habituar-me.”
Afastou-se da parede e convidou o outro a segui-lo.
“Não tem nada que saber: ficamos por aqui e deitamos um olho às portas.
“Fácil” comentou o outro homem a seco.
“Fácil! E podes ver tudo pelas paredes: pensas...” e o velho passou a mão pelo cristal e o azul transformou-se num céu, depois as nuvens a afastar, o verde a aproximar-se, as linhas cinzentas das estradas e os carros a formigar. “... e estás lá. Ah! De quando a quando, lá aparece alguém para uns dedos de conversa.” O velho tinha corpo para lhe fazer uma vénia graciosa.
“Vai doer?”
“Garanto-te que não. Aliás, eles são generosos. Nem pensar que me vais render e sair de mãos a abanar.
“Mas já me ajudaram bastante. É por isso que aqui estou...” Suspirou. O outro encolheu os ombros.
“Vão deixar-te ver para trás, muito para trás. Vais ver como tudo começou para ti. Pensando bem, sim, vai doer um bocado.”
O homem tremia, mesmo com o casacão vestido; os olhos brilhavam com as primeiras lágrimas a brotar.
“Esta dor aguento...” engoliu um soluço do tamanho de um sapo cheio. “Vou vê-los a todos? Tem a certeza?”
O velho acenou, “fizeram o mesmo comigo. Que viagem!” Sorriu.
O outro puxou do cachecol e enrolou-o ao braço para secar as lágrimas. Fungou e limpou o nariz. O velho fitou a cicatriz.
"Aguento tudo para os ver uma última vez..."
“Não a tinhas quando cá vieste.”
O homem de casaco passou o dedo pela falha branca e perguntou-lhe se iam ver os dois.
“Não. Vou aproveitar que posso sair daqui e vou dar uma volta.”
“Vai onde?”
“Comer! De repente fiquei a morrer de fome.” Parou. “Morrer. Sim, talvez. Porque não?”
O velho reuniu os poucos pertences que ali tinha: um manto e um cajado e gingou para o meio da sala. Sentiu o ar com a palma da mão e agarrou em alguma coisa. Girou-a e puxou a porta para si. Deu um último olhar ao seu substituto e suspirou meio aliviado, meio triste. E desapareceu pela porta, que fechou e voltou a não existir na caverna de cristal.

Já sozinho, deixou a mochila cair e o casaco por cima. O cachecol soltou-se do braço e descansou as mãos na parede. Depois a testa no cristal frio.
Voltou a ouvir algo familiar: as vozes que vinham de longe, aquele sussurro de areia que dizia tanta coisa que escapava entre os dedos. Fechou os olhos para se concentrar e já não devia tardar muito. O peso do corpo velho contra a parede, os joelhos dobrados a roçar a parede, a encontrarem o chão. O cabelo despenteado, a cara fria no cristal. O sorriso. As mãos sem força a empurrarem a parede, a descerem pelo tronco, a pousarem no chão da caverna.

Antes de irmos, revemos a vida num segundo. Acontece que esse segundo é uma eternidade...

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