Onze Dias
Passaram onze dias desde que o velho voltou a abrir a porta. O Bernardo contou-os pelo telemóvel que mantinha ligado; a carregar na tomada daquela nova casa.
Soube que estavam no seu mundo pelas mensagens, notificações e spam que entupiram o ecrã. Onde? O velho não dissera. A casita era quente e confortável, o oposto da gruta onde estiveram. No fundo, o velho fizera-lhes uma bondade.
E falaram os dois. A Vera dormiu horas e acordava para os procurar, mas voltava ao sono cansado quando os encontrava.
A conversa entre o velho e o rapaz tinha sido longa e frustrante.
Os dois (três) tinham quebrado as regras quando o Fausto morrera entre mundos. O velho até simplificou bem as coisas:
“A morte é só mais uma porta. Abrimos e passamos para o outro lado. Se morreres no mundo dela, vais para um sítio; se morreres no teu, vais para outro. A tua religião chama-o de Além, Céu ou Paraíso. É, ao menos acertaram nisso. Se morreres entre mundos, ficas preso aqui. O que não é suposto. Agora tenho um meio-termo a viver comigo na portaria e isso vai contra as regras.”
“E aquilo na neve?”
“Foi para ela e para ele. Algumas pessoas precisam de conclusão. O corpo dele foi-se. mas algo dele vai ficar por aqui.”
“E nós?”
“Também...”
E isso foi há onze dias. Naquele momento, o velho estava fora. Ele era apenas um porteiro que respondia a Alguém. Quem? Também não disse. Quem criou as portas, talvez. Explicou que viajar entre mundos era um privilégio a que poucos tinham direito. Talvez para um eleito ou para quem tropeçasse nas portas como ele. Ou como a Vera e o Fausto. Se o tivessem deixado na outra Sintra, não estariam naquele purgatório.
Para passar o tempo, abria o chat com o irmão que tinha respondido. As mensagens de reposta datavam de umas horas. E não conseguia dizer se tinham sido enviadas há uma hora ou recebidas há uma hora quando apanhou a rede do seu mundo. Ainda mais estranho foi quando respondeu aos Onde estás? repetidos, às asneiras frustradas e ao último Foste para a porta, atrasado? e obteve erros de envio. Nenhuma mensagem estava a sair. Outro detalhe que o fez coçar a cabeça foi o calendário: só tinham passado horas desde o pequeno-almoço no café em São Salvador. Com o velho fora, guardou esses fantasmas para si.
A Vera lá se levantava para ir à casa de banho. Ou para comer o que havia na mesa: pão, queijo, havia um jarro com cerveja e carnes frias. A casa onde foram parar estava apetrechada em vários aspectos e nada lhes faltava.
Quando a companheira de casa se apercebeu da ausência do velho, o Bernardo justificou-a com assuntos que ele por tratar.
Não fizeram conversa de salão nem se apresentaram formalmente. Partiram do princípio que naquela altura já não era necessário.
E para não ficarem mudos, o Bernardo contou-lhe partes da conversa:
“Para abrir uma porta é preciso uma chave. Simples: deixamos com ela algo de nós e passamos. A tua mãe foi a chave para entrares. O Joel foi a chave para regressares. A dela também. E a chave dele foram vocês os dois” explicou o velho.
“Quer dizer que ele pode entrar?” exclamou quase a saltar do lugar.
“Evidentemente. Difícil agora. Problemático se acontecesse.”
“O que lhe aconteceu?”
“Justiça.” E o Bernardo não perguntou mais sobre o assunto.
A Vera saiu da mesa e foi para a porta de casa. A fechadura rodou, mas a porta manteve-se imóvel. O mesmo para as janelas de vidro. Para lá da casa, um enorme campo de amarelo torrado prolongava-se até fundir com o horizonte.
“Falas-me de portas e outros mundos como se não fosse nada, mas tens de admitir que não faz muito sentido” respondeu-lhe a Vera quando desistiu de abrir portas e janelas.
“Eu sei, é de loucos! A verdade é que eu vim de outro mundo. Um mundo parecido ao teu. Salvador é São Salvador no meu mundo, não temos Mãos nem Braços nem Imperadores. E temos isto.” Estendeu-lhe o telemóvel.
Ela aceitou-o, “É um telefone?”
“Sim. Também...” riu-se.
“Temos telefones. Disto não, talvez os nobres.”
“Sim, também me disseram isso.”
“O Joel sabia?”
“Do quê?”
“De onde vieste.”
“Contei-lhe agora para o fim.”
“Acreditou?”
“Acho que sim.”
“Tão fácil...”
Levantou a mesa e deixou-a na bancada.
“Eu lavo.” O Bernardo ofereceu-se, mas ela recusou-o. Foi encostar-se ao vidro e embaciou-o para desenhar nele tal como fizera há dias quando o velho ainda lá estava.
“É o que vai acontecer connosco? Justiça?”
“Não sei, Eles ainda vão decidir. É a primeira vez que algo assim acontece e durante a minha vigia. Isto não vai correr bem para mim. Não, não. Por agora, ficam na minha guarda.”
“Há alguma coisa que possamos fazer?”
O velho guardião ponderou por um bocado – um longo bocado. Sacudiu a cabeça muito devagar. Também estava sentado à mesa, mas não havia tocado na comida. Era só para eles, disse quando entraram na casa. Não comia.
O Bernardo acendia a luz do telemóvel e apagava-a. Acendia. Apagava. Acendia. Apagava.
As notificações da vida real faziam o aparelho vibrar e distraíam o velho que estava sempre a olhar.
“Não tínhamos intenção de fazer mal.”
“Eu sei.”
O Bernardo encheu uma caneca com água da torneira e foi para o vidro.
“Estamos no meu Alentejo?”
“Por enquanto.”
“Já fomos duas vezes ao meu mundo. Porque não ao dela?”
“Regras.”
“Regras, certo”
“Mas eu posso ir para a minha casa?”
“Não.”
“Não...”
Mas ao sétimo dia, o Bernardo foi ter com o velho que estava sentado junto à salamandra. A Vera andou acordada nesse dia, mas não falou com ninguém. Tratou da sua higiene e ficou no seu canto, a beber e a comer. Às tantas abraçou-se ou de frio ou de saudade. Quando voltou para a cama, o Bernardo voltou a puxar da conversa.
“Tem falado com a Vera?”
“Ao tempo dela. Não é fácil. Dá-lhe tempo.”
“Certo, tempo. Já estamos aqui há mais de uma semana e não nos disse mais nada. Quero saber o que vai acontecer?”
“Rapaz: eu tomo conta das portas há mais anos daqueles que sabes contar, uma semana é uma borbulha nas costas de um gigante. Vais saber esperar!”
E com essa declaração e autoridade, foi como se o velho fosse do tamanho desse gigante.
“Desculpe” pediu o Bernardo. “Se alguém tiver de ser castigado, castiguem-me a mim. Eu abri a porta duas vezes. Eu causei aquilo tudo. Eu trouxe o Fausto para dentro. Fiquem comigo. Deixem-na voltar para a família. Faço qualquer coisa!”
E o porteiro soergueu o sobrolho. Cofiou o queixo e baloiço a cabeça como se concordasse com vozes invisíveis.
“Interessante” concluiu finalmente. “Acho que podemos arranjar algo.”
E sumiu.
Ao décimo dia, o porteiro regressou com um sorriso pintado na face. O Bernardo estava deitado junto à Salamandra enquanto a água escorria no duche. A Vera não se via.
“Já decidiram” anunciou quando viu o rapaz sozinho. “Até te estão agradecidos pela sugestão.”
“Diga-me.”
“Eles aceitaram a tua culpa. Ela vai poder ir para casa.”
A expressão conflituosa do rapaz não passou despercebida, se estava aliviado pela Vera, estava perdido pela sua sentença, mas o velho tinha mais para dizer:
“Ficas no meu lugar. Eu desapareço.” Quando se apercebeu que o rapaz ia intervir, sacudiu o braço para não o interromper. “E pela tua acção, eles querem que sejas tu a levá-la, e...” e aqui sorriu como uma raposa. “quando acabares tudo no outro lado, voltas para cá. De acordo?”
Engoliu em seco de tal maneira que o outro até ouviu. A maçã na garganta quase que lhe rebentou para fora. Oh, aquela serpente a apertá-lo cada vez mais, a sufocá-lo.
“De acordo... Prometo.”
“Pronto. No final, correu bem para todos!” Riu com vontade e quando viu a rapariga a sair vestida, chamou-a e contou-lhe a boa nova.
A Vera mostrou um sorriso enublado. Queria voltar, mas seria a mesma coisa?”
Ao décimo primeiro dia, o Bernardo tinha a mala cheia com mais comida e bebida. O telemóvel carregado e tudo o que estava em bom estado desde a sua primeira viagem. A Vera só trazia a roupa no corpo, mas sentiu a necessidade de trazer uma faca da cozinha.
O porteiro fez as duas despedidas, sem qualquer menção ao acordo com o rapaz, e avisou-os que não iam sair em Sintra.
“Não se preocupem, deixo-vos à porta de casa. Estão quase no fim.”
Foi a uma gaveta da casa e tirou a argola de chaves. Também apanhou algo comprido do chão que passou ao rapaz.
“Não quero isto aqui.” Era a lança que o feriu na cara. Estava melhor agora, a casa tinha primeiros socorros e conseguiu tratar-se o suficiente para não infectar, mas tinha ficado com uma bela marca de guerra.
Depois Rodou uma, a fechadura fez clique e a casa de campo, algures no Alentejo desapareceu, para dar lugar à porta debaixo dos ramos de cerejeira.
Abriram-na e saíram para a rua e para um cenário que os agoniou. Quiseram voltar para trás, mas a porta tinha deixado de existir.
Os ramos da cerejeira estalavam com o vento forte e o cheiro a madeira queimada esbofeteou-os para a nova realidade.
Vários focos ardiam aqui e ali na direcção de Salvador. Dois cadáveres estavam a ser debicados no montinho da cerejeira por aves que desafiaram a chegada dos humanos e muitos mais jaziam por todo o lado, com armas nas mãos ou cravadas em si. Algumas das expressões eram de agonia e raiva.
A mão do Bernardo fechou-se com força à volta da lança da Porcelana Branca e a da Vera apertou a faca, que encostou ao peito.
Juntos caminharam para Salvador.
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